'Me sinto hostilizado', diz ator negro sobre diálogos em peça sobre racismo

É com ironia e humor ácido que a peça "Preto no Branco" fala coisas terríveis sobre os negros. O texto do inglês Nick Gill, que fica em cartaz até domingo (15) no Teatro do Núcleo Experimental, sob a direção de Zé Henrique de Paula, faz uma crítica à classe média britânica e a seus preconceitos.

Frases como "eles são uma raça violenta", "você não me vê no meio da rua com um canivete, né?" e "eles parecem só querer brigar e esfaquear uns aos outros" estão por toda parte [clique aqui para ler um trecho do espetáculo].

Sidney Santiago, que faz o personagem negro, diz que a peça exige uma entrega muito grande. "Como artista, consigo ter um distanciamento emocional e espiritual, é um treinamento cotidiano. Porém, como um ser social, me sinto hostilizado", diz o ator, que prefere não falar com o público depois da sessão.

Na história, uma tradicional família britânica se surpreende quando a filha chega com um namorado negro e muçulmano. Além dos diálogos fortes sobre racismo, a peça também tem cenas de masturbação e insinuação de incesto.


Mesmo com a encenação cômica, que vai pelo caminho da artificialidade dos diálogos, o riso do público, aos poucos, vai dando lugar ao silêncio. E as ações cruéis dessa família pervertida mostram que todos são piores do que parecem.

Além de encenar "Preto no Branco", Sidney também está em cartaz com o monólogo "Cartas à Madame Satã ou Me Desespero sem Notícias Suas" até 25/2, no Sesc Ipiranga. A montagem do grupo Os Crespos debate a homoafetividade masculina entre negros.

Informe-se sobre "Preto no Branco"


LEIA ENTREVISTA COM SIDNEY SANTIAGO

"Guia Folha" - A peça é muito forte. Qual foi a sua impressão quando leu o texto pela primeira vez?
Sidney Santiago - Tentei fazer primeiro uma leitura política, pois, sendo um homem negro e que luta por igualdade, somente entendendo o contexto geral poderia ter tranquilidade para compreender e me por à disposição do encenador, de modo que a leitura política funcionasse como um antídoto para toda cólera que é despejada.

Cheguei à conclusão de que o texto parte de um lugar da desesperança, da ausência de possibilidades de uma nova ordem social e, sobretudo, de como a "branquitude" minou as relações e conseguiu se estabelecer no mundo. Isto me conquistou. Um texto que pudesse denunciar essa manutenção desse "status quo" e levar essa problemática através de um gênero (comédia) que raramente se apropria deste tema. As leituras não cessam, estão em curso.

O que o público costuma comentar com vocês depois do espetáculo?
Em nossa primeira temporada no Sesc, fui abordado por um casal (branco) que dizia ter se divertido muito, eles tinham um sorriso largo e um riso sádico no rosto e perguntaram se minha orelha estava no lugar (fazendo menção à passagem da peça onde o personagem tem sua orelha cortada).

Outra abordagem foi a de uma jovem negra que questionou o meu convite, dizendo que estava farta de histórias terríveis acerca do seu corpo. Com isso, pós-espetáculo, decidi não ter contato com o público. Prefiro me preservar e possibilitar que o silêncio seja um campo para a reflexão, visto que temos um espetáculo de uma hora e meia, muito denso, e com uma temática/encenação pouco enfrentada pelo nosso teatro (o legado da escravidão em nossas vidas).

Um outro dado da recepção é a praxe de mensurar a encenação, o desempenho dos atores e a direção. É raro uma abordagem sobre o cerne da questão. Percebo também que, muitas vezes, por se tratar de um texto inglês, isso conforta, ou seja, não se trata de uma problemática nossa (brasileira). Com isso, numa espécie de autodefesa, o espectador muitas vezes recorre ao nosso nocivo mito da democracia racial para justificar as atrocidades.

Já teve alguém que se sentiu incomodado e saiu no meio da sessão?
Em duas ou três sessões tiveram algumas pessoas que saíram sim, poucas. Tenho a impressão de que tenham sido motivadas pela questão familiar sugerida como um dos temas periféricos do texto, o incesto/assédio.

Este ponto abala a moral do público, que, em sua maioria, é composto por pessoas brancas da classe média. Agora, todo o processo de violência simbólica e física, a constante desumanização e a crítica central do texto —o conflito entre brancos e negros (Ocidente/Oriente)—, tenho convicção que esses pontos não motivaram saídas, e isso é um dado importante sobre nossa sociabilidade.

O texto é muito irônico e questionador ao falar coisas horríveis sobre os negros. Você, em cena, se sente mal com certos diálogos?
Fazer este espetáculo exige um engajamento e entrega. Como artista, consigo ter um distanciamento emocional e espiritual, é um treinamento cotidiano. Porém, como um ser social, me sinto hostilizado.

Muitas vezes penso nos poucos espectadores negros e como eles vão receber a história, como vão se sentir a cada piada, a cada riso que muitas vezes revela um sadismo ideológico. Contudo, é uma escolha política estar neste papel, e acredito no teatro como ferramenta de transformação. Precisamos falar cada vez mais do racismo, nas diversas formas e conteúdos.

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