'Eles são uma raça violenta', diz trecho de peça que insulta negros; leia mais

São tantos diálogos e atitudes racistas em "Preto no Branco" que a risada provocada pela encenação cômica vai sumindo aos poucos. Logo no início, a dona de casa Jane diz coisas do tipo: "O problema são os próprios negros, não é? São eles mesmos. Eles são uma raça violenta, eles não conseguem evitar."

Em cartaz até domingo (15), no Teatro do Núcleo Experimental, a peça foi escrita pelo inglês Nick Gill e critica a classe média britânica. A direção é de Zé Henrique de Paula, e no elenco estão Marco Antônio Pâmio, Chris Couto, Bruna Thedy, Thiago Carreira e Sidney Santiago. Os ingressos custam R$ 40.

Na história, o casal Jones, britânico e tradicional, se surpreende quando a filha lhes apresenta o namorado Kewsi, negro e muçulmano. O novo genro acaba trabalhando com o Sr. Jones, que vende armas no Oriente Médio. A peça é forte, com cenas de sexo, ironias e humor altamente ácido.

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LEIA TRECHO DE "PRETO NO BRANCO":

JANE - Então, agora, sente um pouco e leia, eu vou só terminar o nosso jantar.

JAMES - Obrigado, meu amor. Ah, querida. Mais notícias no jornal sobre outro esfaqueamento, veja.

JANE - Não.

JAMES - Eu receio que sim. Outro adolescente em um dos bairros mais pobres desta que é uma das maiores cidades do nosso país. Um imigrante, eles estão falando. Um imigrante negro.

JANE - Ah, querido.

JAMES - Eu sei, eu sei.

JANE - Eu percebo como isso te incomoda.

JAMES - Pra ser honesto, incomoda, minha querida.

JANE - Mas, meu amor, não há nada que você pudesse ter feito.

JAMES - É o que eu vivo me dizendo.

JANE - O problema são os próprios negros, não é? São eles mesmos. Eles são uma raça violenta, eles não conseguem evitar. De que outra forma você explicaria essa violência? É uma coisa genética, eu acho; eles são diferentes de nós.

JAMES - Mmm.

JANE - O que eu quero dizer é... nós vivemos todos no mesmo país, nós todos gozamos dos mesmos benefícios sociais, mas você não me vê no meio da rua com um canivete, né? Eu não sou uma pessoa violenta. Eu sei o que eu quero da vida —eu quero ser capaz de criar a minha família, eu quero ter uma casa confortável para nós morarmos. E os meus filhos, eu sei o que eu quero pra eles e o que eles querem pra si próprios —dar duro estudando na escola e na universidade e depois encontrar um bom emprego, pra que eles possam ter sua própria família e criar seus filhos. Mas... eu não sei o que os negros querem da vida. Você vê eles por aí com centenas de filhos, que eu e você trabalhamos duro para sustentar com os nossos impostos, querido, e eles parecem não querer melhorar —eles simplesmente vivem à custa do Estado, não é isso?

JAMES - Estado bem generoso.

JANE - Estado muito generoso, exato. Como eles vão conseguir melhorar sem trabalhar pra subir na vida, na sociedade? E quanto aos filhos deles, bom. Com certeza eu não sei o que eles querem. Eles parecem só querer brigar e esfaquear uns aos outros. É verdade, eu li sobre isso. Bom, deixem eles. Assim que todos os que querem se matar estiverem mortos, só sobrarão os que não querem se matar, então nós vamos conseguir viver em paz.

JAMES - Isso faz todo o sentido, sabia? Mas eu tenho certeza que não são todos os negros, amor.

JANE - Não, claro que não, você está certo, eu estou generalizando. Não são todos eles.

JAMES - Tem aquele rapaz simpático que trabalha no banco.

JANE - Veja só, é esse o ponto, querido. Ele foi naturalizado, não foi? Ele aderiu à nossa cultura, de verdade. Ele parou de carregar uma faca, não parou? Ele assumiu um cargo num estabelecimento respeitável, não assumiu? Ele começou a se vestir de terno e ter hora de almoço, não começou? Ele assina as revistas certas, não assina?

JAMES - Não assina?

JANE - Isso, não assina? É isso.

JAMES - É isso.

JANE - Isso. Mas ele é uma exceção, não é?

JAMES - Não é?

JANE - Quer dizer, outra noite eu estava voltando da estação, depois de fazer umas comprinhas na cidade, e tinha um grupo de negros parados perto da plataforma. Só parados.

JAMES - Você não me contou sobre isso.

JANE - Bom, eu não quis te aborrecer, querido.

JAMES - Eles bloquearam a plataforma, esses jovens imigrantes?

JANE - Não, mas foi isso que pareceu sinistro.

JAMES - Covardes.

JANE - Eles só ficaram lá, parados, conversando. Às vezes rindo, eu não sei do quê. E qualquer um deles podia ter uma faca.

JAMES - Você é tão corajosa.

JANE - E eu simplesmente não sabia o que fazer. Eu quase congelei, James. Eu estava lá, no trem, e eu quase não conseguia colocar o pé em cima da
plataforma. Eu fiquei tão assustada. Eles estavam de gorro.

JAMES - De gorro?

JANE - Não dava para ver os rostos, James, porque eles eram negros, como eu disse. Eu já disse que eles eram negros?

JAMES - Negros? Eu acho que não, querida, não.

JANE - Bom, eu não conseguia ver os rostos deles porque eles eram negros e os gorros eram muito escuros. Só dava pra ver os olhos e aqueles dentes brancos, quando eles davam risada. Eles pareciam uns lobos, meu amor. Eu fiquei tão assustada.

JAMES - Ah, querida. O que você fez?

JANE - Bom. Eu desci do trem e antes pela plataforma, passei por eles olhando pra baixo, o mais rápido que eu consegui, pra passar por eles. E o tempo todo eu pensava "Eles podem ter uma faca", só pensava no que eles poderiam fazer comigo. Eles poderiam facilmente ter me esfaqueado, James. Ou me levado pra algum lugar e me estuprado.

JAMES - Ah, querida.

JANE - Poderiam. Eles poderiam ter feito o que quisessem comigo, do jeito que eles quisessem. De um jeito imundo, eu fico imaginando.

JAMES - Eu não duvido disso nem por um instante.

JANE - Foi uma sorte, James. Pura sorte eles ficarem parados lá e não prestarem atenção em mim.

JAMES - Eu ouso dizer que eles reconheceram que você é o tipo de pessoa que deve ser tratada com respeito.

JANE - Bom, eu não queria dizer isso, mas eu acho que você acertou. Eles perceberam alguma coisa na minha conduta que dizia a eles "Seus bárbaros, é melhor ficar longe de mim, ou vão ter que pagar no fogo do inferno", e eu acho que isso ajudou a manter todo longe de mim.

JAMES - Eu diria que você está certo.

JANE - Você acha?

JAMES - Acho. Agora, não vamos mais falar desse assunto. Vamos esquecer tudo isso e aproveitar a nossa noite, vamos?

JANE - Você tem razão, claro, querido.

JAMES - O jantar está quase pronto?

JANE - Sim, querido.

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