'Marte Um', filme premiado em Gramado que sonha com o Oscar, escancara um Brasil em crise
Exibido também em Sundance, longa de Gabriel Martins traz desejos e frustrações do país atual
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Marte Um foi o projeto que tinha como objetivo colonizar o planeta vermelho até 2030, numa missão só de ida orçada em US$ 6 bilhões, ou mais de R$ 30 bilhões, que seriam pagos com patrocínios. A ideia era ambiciosa e improvável demais, tanto que foi cancelada há pouco.
São sonhos igualmente ousados que movem a trama de "Marte Um", que acaba de vencer quatro Kikitos no Festival de Gramado e chega nesta quinta, dia 25, aos cinemas.
Foi com ansiedade que o diretor Gabriel Martins aguardou a estreia no Brasil, depois de passagens por Sundance e pelo Outfest. A recepção lá fora foi sempre calorosa, mas isso não era garantia de aplausos por aqui também, disse ele após a sessão em Gramado, ainda sem saber que o filme embolsaria o prêmio do júri popular, o prêmio especial do júri oficial e os troféus de roteiro e trilha musical.
Nova produção da Filmes de Plástico, que desde 2009 vem transpondo o microcosmo de Contagem, em Minas Gerais, para as telas em filmes elogiados, como nos longas "No Coração do Mundo" e "Temporada", "Marte Um" acompanha a família Martins, formada por pai, mãe, filha e filho.
O primeiro trabalha como zelador num condomínio de luxo. A mulher é faxineira em apartamentos igualmente faustosos. A primogênita estuda direito, enquanto o caçula sonha em participar da Marte Um, apesar de o pai projetar nele seus sonhos futebolísticos. São pessoas simples, como muitos brasileiros que quebram a cabeça para pagar as contas no fim do mês e comemoram aniversários com churrascos.
Mas, conforme o filme avança, a vida cuidadosamente planejada vai entrando em não somente uma, mas várias crises. Ao fundo, televisores e rádios anunciam que aquele é o Brasil das eleições de 2018, dando a dica de que essas crises pessoais ainda vão se ampliar, diante de um país em dificuldades financeiras e de uma pandemia batendo à porta.
Tudo não intencional, já que "Marte Um" foi gravado a partir de novembro de 2018. Martins ainda não sabia o que o futuro reservava e, por isso, não quis fazer um "diagnóstico" do país, mas diz que pretendeu contextualizar o tempo de seus personagens. No fim, seu roteiro acabou ganhando ainda mais potência.
"Houve acidentes do universo que puseram o filme no lugar certo. Não estava nos planos o filme ser lançado em 2022, mas agora, em ano de eleição, as lutas dessa família e os sonhos dos personagens ganharam uma dimensão muito mais complexa", diz.
"O plano principal do filme nunca foi falar do governo Bolsonaro. A eleição dele traduz um momento histórico, claro, que deve ser situado. Mas tudo o que acontece com esses personagens transcende o tempo, não é como se o que estamos vivendo invadisse o filme a ponto de o deixar datado."
Nesse aspecto –e também na facilidade que o longa mostrou ter, em Gramado, de arrancar lágrimas dos espectadores–, "Marte Um" se aproxima de "Central do Brasil", outro filme-diagnóstico do Brasil quando foi lançado, mas jamais preso somente às questões de seu tempo. As trilhas sonoras são o terceiro ponto de encontro entre as obras, ambas pensadas para abraçar e potencializar a carga dramática.
Martins e a equipe da Filmes de Plástico esperam, agora, que haja uma quarta semelhança –uma indicação ao Oscar. Pela primeira vez, a produtora mineira vai submeter à Academia Brasileira de Cinema um filme como concorrente à vaga nacional da premiação. Membros da entidade, aliás, estiveram na plateia de "Marte Um" em Gramado, aplaudindo efusivamente o longa.
Mas este nunca é o objetivo, diz Martins, muito mais interessado em contar a história de personagens que, para ele, representam muitos outros brasileiros. Mais do que isso, ele afirma que queria filmar corpos negros num lugar historicamente negado a eles na cinematografia.
"Existe uma tradição de espetacularização de corpos negros, pela violência, pelo sofrimento, estabelecendo sempre uma relação com uma história de luta que, na prática, muitas vezes, joga contra uma renovação. ‘Marte Um’ quer complexificar isso, porque não falamos de heróis e vilões. Falamos de pessoas vivendo, de pessoas humanas."
O longa foi realizado graças a um edital afirmativo voltado a diretores ou produtores negros, o primeiro de seu tipo —e já descontinuado. Martins lamenta o fim do fomento e afirma ver nisso um freio a uma "espécie de primavera do cinema negro no país".
Se, em "Marte Um", Deivinho, o filho, deseja se tornar astrofísico para ir ao planeta vermelho, fora da ficção o diretor espera que outros garotos e garotas negros possam realizar o sonho que já foi dele –o de um dia fazer filmes. "O cinema brasileiro caminha para algo lindo, mas esperamos incentivo."
O repórter viajou a convite do Festival de Gramado