Como serão os bares e as cervejas de SP daqui a 25 anos? Leia em texto de Joca Reiners Terron

No aniversário de um quarto de século do Guia, escritor retrata a vida noturna paulistana em 2047

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​​​​​​​Este Guia me convidou pra tomar umas e outras daqui a 25 anos, em 2047. Como não chego a ser um escritor morto de fome, mas vivo morto de sede, aceitei. Viajo no tempo porque preciso, volto porque te amo, não é assim, seu Karim? Quem recusaria um jabá desses, viajar ao futuro pra lotar a caveira com tudo pago? Como disse o grande filósofo Nunes após driblar o zagueirão, fiz que fui, não fui e acabei fondo.

Não contava com a ressaca logo na chegada, antes mesmo do torresmo. Os métodos de viagem no tempo precisam evoluir: uma garrafa de Pitú mais engradado de cerveja me tornaram um pária temporal. Cerveja como for, as ressacas sempre estão no futuro, nunca no passado. No passado só existe a ignominiosa sede.

Meus 105 quilos de células medianamente saudáveis se plasmaram diante da caixa de concreto onde outrora foi o edifício Matarazzo. Agora, em março de 2047, é um bar subterrâneo chamado SUBSURUB (em provável reminiscência do período em que o lugar abrigou a surubática prefeitura).

De relance, busquei o viaduto do Chá: só encontrei escombros, assim como as ruínas do Municipal. Na gigantesca caçamba de entulho que no futuro de agora o Anhangabaú se transformou, a sombra dos zumbis zanzava pelo vale, murmurando: eu quero beberrrr.

Na escadaria de entrada, fui arrastado pela malta boêmia, mais parecida a um rebanho de camelos na arrebentação. Enorme, uma fulana nos meus calcanhares praticamente me levava no colo. Perguntei qual era o motivo da pressa, e a fulana, do alto dos tamancos translúcidos, respondeu: tá doida, bi, faz cinco anos que não tem uma mísera latinha nesse país e hoje chegou um carregamento da China.

Então descobri duas ou três coisas: não existia água descontaminada nem pra benzer, quanto mais pra ficar de fogo. E só existia cerveja chinesa, feita com água do mar dessalinizada e purificada. Deduzi que o mar já devia ter secado. Senti a garganta arder.

E assim foi, fondo: muito lá embaixo, no calor medonho das profundezas, a clientela já quebrava o pau, arrancando torneiras das paredes, de onde já não brotava uma só gota, chinesa ou não. Sou grato pelas dicas deste Guia, mas não a ponto de morrer por ele.

Na porta, peguei o primeiro Uber que encontrei. Desconfio ter reconhecido o motorista: parecia comigo, só que 25 anos mais velho. Isso aí não é bar, não, eu disse pra mim, é balada. Eu continuou: tanto tempo depois e a tradição botequineira da cidade continua igual, só tem imitação. De bar carioca, mim perguntei pra eu, de bar japonês? Não, de bar do passado, eu falou, agora eles reproduzem bares antigos tim-tim por tim-tim em impressão 3D. Vou te levar na Mercearia São Pedro, quer?, eu falou, arrancando com o carro flutuante. Não, mim disse pra eu. Toca pra casa. Vamos beber juntos aquele uísque escondido, pois nunca estivemos em melhor companhia. E fui, fomos. Fondo.

Retrato do escritor Joca Reiners Terron - Marcus Leoni/Folhapress