Tom Zé: Na São Paulo em recesso, as chamadas pequenas coisas são enormes
Em um dia, na capital paulista, uma aglomeração de formigueiro inquieto; agora, ausências
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Primeira coisa, uma exclamação: ué, para onde foram os carros!? Que decepção! Estavam todos aqui agora mesmo!
Dentro de casa, aquela solidão contagiante. Na rua, já no carro, a neurose: medo de assalto.
Medo do próximo, de outro ser humano: esse pavor que entrou na moda e não sai. Seguimos pela rua Homem de Mello e, por hábito, pela pacífica rua do Palmeiras, assuntando a entrada do shopping Bourbon. Na véspera, uma aglomeração de formigueiro inquieto, como se tivesse caído um balão; agora, ausências, como se todo mundo tivesse corrido dali.
Já voltando para o ponto de partida, minha mulher sugeriu que subíssemos a rua Cardoso de Almeida desde o início. Na Turiaçu, na altura do sacolão, só lugares deixados às moscas. Na quase imobilidade letárgica do entardecer que se assentou em nosso espírito, fomos subindo. O percurso estava um vazio só. Neusa disse que se a Ofner estivesse aberta –improvável– cairia bem um chocolate. Arriscamos. Todos os comércios do caminho eram portas fechadas. Demos sorte: confeitaria aberta, mesas na calçada da Caiubi, onde ela fica.
Dobramos ali na esquina, diante duma farmácia que mudou de nome, agora é Ultrafarma. Tentávamos estacionar quando veio nos ajudar delicadamente a entrar numa vaga um rapaz trajado de moça, de sutiã preto, saia estampada curta e uma tentativa de penteado de salão, cachos verticais escuros até o pescoço.
Na mesa vizinha àquela onde nos sentamos uma mulher falava sem parar com um ouvinte, me esqueci do rosto dele. Fiquei curioso: por lá sempre havia algum freguês pastoreando um cachorro. Desta vez, não. Pedimos um chocolate cremoso. Em volta, um marasmo de pouca gente. Passou uma criança de seus oito anos, muito concentrada, vestida numa roupa rosa vibrante. Uma mulher a levava pela mão. Fez que ia entrar na confeitaria. Voltou e foi levantada nos braços por um homem, pai ou, no mínimo, tio. Seguiram em direção à Cardoso, lá se foram.
O estacionador, que nunca tínhamos visto por lá, tinha um parceiro de serviço que parecia ser o verdadeiro dono do ponto, já estávamos acostumados com ele. Aí nos perguntamos: onde será que mora o novo estacionador? Onde vai passar a noite de Natal? Concluímos: não dá para perguntar. Perigo de parecer interrogatório policial.
O guardador efetivo de vez em quando se aproximava dele; pelos gestos, parecia fazer algum comentário sobre o trabalho. Ainda com alguma claridade de verão reinando, dali a uns 20 minutos fomos embora, de novo auxiliados na saída pelo gentil guardador de sutiã preto.
Na volta para casa, passamos defronte ao convento onde mora Frei Betto. Nem ele nem ninguém circulando pela ruazinha. Insistíamos em nos perguntar, sobre o estacionador: ele tem alguma casa para onde ir? Tem parentes que o abriguem nesta noite tão comovente para a humanidade, nesta noite de Natal? Essas enganosamente chamadas pequenas coisas são enormes.
Uma amiga nossa, quando mais jovem, fazia bolos, untava pão com manteiga, enchia garrafas térmicas de café quente e visitava os baixos de um viaduto aqui em São Paulo, na véspera de Natal. Para alegria dos moradores da calçada.
Em Irará, cidade da Bahia onde nasci, ninguém ficava na rua ao desabrigo. Se qualquer errante era visto ruas afora, o diretor do abrigo dos pobres recebia o recado de algum iraraense e tomava providências para acolhê-lo.
De volta à porta de nosso prédio já tínhamos concordado: vamos ver se o moço do estacionamento vem tomar um café de Natal conosco em casa.
Regressamos à rua Caiubi. Súbita, a confeitaria ultimava os preparativos para fechar. O estacionador tinha ido embora. Transeuntes? Nada. Inércia. Voltamos, num bairro em que a cada quarteirão se constrói um ou mais prédios altos, de apartamentos pequenos, muitos sem garagem. São centenas de moradas? Construção-destruição de arredores onde um rio de microprainha branca foi aterrado e virou a avenida Sumaré.