Mercearia São Pedro: Quando morre nosso bar predileto, morremos junto

É simbólico a Merça sucumbir neste ano em que os bares de SP lutam para não morrer de Covid

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É sempre difícil lembrar um lugar onde a gente vai para esquecer. Espero que este seja o primeiro e último necrológio de bar que me peçam. O ideal era não escrever nada, apenas encher a cara, pois a Mercearia São Pedro morreu. Nascemos no mesmo ano, em 1968, o ano que não terminou. Antes ela do que eu? Mas os anos terminam em 31 de dezembro, seu Zuenir, invariavelmente à meia-noite.

Quando morre nosso bar predileto, morremos junto. Não aos poucos: em doses. Chega a ser simbólico a velha Merça sucumbir neste ano em que todos os bares de São Paulo lutam para não morrer de Covid.

Já a Merça morre de outro assunto, é morte matada pela especulação desta cidade que não quer frear. Morte dinheiristicamente morrida, morte impudica e safada. Morte metonímica também, pois periga arrastar junto a Vila Madalena inteira para a cova. Restarão os sapatênis sambantes da Aspicuelta em desarmonia, os dórias sem glória dos bares sem alma. Só fantasmas.

A Mercearia São Pedro na noite de quarta (18), quando sócio disse que local irá fechar as portas - Gabriel Cabral/Folhapress

Exagero? Afinal, não passava de um bar. Bem, era o bar que já foi a sala de casa, meu escritório, o lugar onde eu recebia telefonemas de trabalho e do baralho, onde eu comia pastel com a minha filha depois da escola que fica ao lado.

Ela fazia lições de casa ali nas mesas, e não adianta vir com esse seu olhar torto de censor: éramos jovens e felizes, minha filha e eu (ela tinha cinco anos). Os pastéis exalavam nuvens e pingavam óleo nos cadernos dela.

Quando o século virou, lá por 2001, nos viramos também, e arrastei para a Merça amigos escritores que frequentavam o Platibanda. Todos vieram, quando contei que o bar vendia livros, além de birita: Marcelino, Ivana, Del Fuego, Bressane, Bebel, Índigo, Adrienne, Bia e sei lá mais quem.

E lá já estavam Reinaldão, Matthew e a molecada, Pratinha, Paulinho, Chico, Fabrício e um sem fim de gente que chegou antes, durante e depois, como o Rafa, o Gabriel, o Fábio e a Maria. E as atrizes todas, os cineastas todos, os músicos e matemáticos como o Professor Zeca.

Éramos todos uns Nick Cave wannabe, mas não somente —a Mercearia sempre foi lugar de gente de verdade, do Seu Sorrentino, do Pepê equilibrando sua taça de vinho inesgotável, do Tico, da Ana, do Gandula, nossa, tanta gente. Quantas vezes tomei uma ao lado do Gigante Brasil, enquanto via o Prego abrindo a porta do táxi e desembarcando suas duas namoradas?

A dança do balcão de zinco da Mercearia, na qual todos sarravam e eram sarrados, mesmo que sem querer, era abençoada pelo inexplicável crânio de macaco que ficava ao lado de outras porcarias engorduradas nas prateleiras cobertas de garrafas cabeludas. Não se trata de surrealismo nem delirium tremens. Era isso mesmo, sem explicação.

Explicação não é algo que se procure em bar, no máximo uma expiação. E na Mercearia, como uma porta da esperança sempre aberta, a Lulina conheceu o Renatão, a Lari e o Xico começaram a namorar, assim como muitos casórios se desfizeram em pó.

Muito pândega, a Cris diz que o André realizou o sonho da mulher e da casa própria na Merça, pois ali conheceram o Tico, gerente do banco que lhes descolou um financiamento de amigão.

Posso dizer que eu também, pois lá conheci a Egípcia do Crato, apresentada pelo Xico, que anos depois seria nosso padrinho de casamento, assim como Tico também aviou nossa hipoteca, ali mesmo do balcão como se dissesse "sai uma porção de calabresa acebolada". A Mercearia era um tipo de lugar onde se arranjava de tudo, até dívidas eternas com juros de 9%.

E tem os garçons, Rogério, Dario, Neto, Rodrigo, Darlan e tantos outros; em algum momento cheguei a funcionar como uma espécie de ombudsman do boteco, fazia reuniões para desamarrar desavenças.

Marcelino Freire e eu editamos, anos atrás, "Saideira, O Livro dos Epitáfios", coletânea de últimos dizeres dos frequentadores cuja importância era a de anunciar, meio sub-repticiamente, que a morte atual, o fim do bar que tanto amávamos, podia acontecer. Foi lançado no aniversário de 50 anos da Mercearia São Pedro, numa outra vida que não é mais esta.

Agora só nos resta fazer vaquinha para erigir uma estátua ao França, o maior menor garçom do mundo, na pracinha ao lado da Mercearia. Epa. Será que a pracinha continua lá?

O garçom França, na Mercearia, em 2009 - Rodrigo Marcondes/Folhapress