Descrição de chapéu Crítica
Bares e noite

C... do Padre faz 65 anos com boas batidas, mas cercado de bares ruins no Baixo Pinheiros

Boteco ganhou o apelido por ser vizinho de igreja em SP e hoje divide espaço com arapucas turísticas

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O C... do Padre (Bar das Batidas)

Avaliação: Bom

Quando me pediram para escrever sobre o 65º aniversário do bar C... do Padre, a primeira dúvida foi: eu poderia escrever "C... do Padre" neste centenário jornal? Se você viu reticências depois da letra "c", em vez da letra "u", a resposta é não —mas o apelido no logo oficial tem reticências mesmo.

O boteco, cujo nome de batismo é Bar das Batidas, está há todo esse tempo numa esquina de Pinheiros, atrás da paróquia Nossa Senhora do Monte Serrate –daí o apelido. Há décadas ninguém chama o estabelecimento por sua denominação formal. Nome de precaríssima imaginação, vamos combinar.

A rigor, a birosca fica na lateral da igreja, o que não muda grande coisa. Bêbados não respeitam o clero nem os pontos cardeais.

Para celebrar a data, o C... do Padre agitou uma festança de rua neste sábado, dia 27, com shows de um Elvis cover e de um Raul cover. Os cantores homenageados já morreram, mas o bar pulsa mais do que nunca. Velho que sou, acompanhei boa parte dessa história.

Entrei pela primeira vez no C... do Padre no fim dos anos 1980, quando a extensão da avenida Faria Lima ainda não havia destroçado uma extensa área residencial.

Entrada do bar, em Pinheiroz, na zona oeste de São Paulo - Gabriel Cabral/Folhapress

Era uma quina com balcão, sem lugares para se sentar, e com uma incrível coleção de provolones e salames pendurados do teto. Com o intenso movimento de ônibus da rua Pais Leme, ao lado, a fuligem preta cobria os penduricalhos. O bar servia apenas batidas. Talvez cervejas, não lembro –se as servisse, certamente estariam mornas.

Voltei no começo da década passada, quando as quadras entre o largo da Batata e a marginal Pinheiros, repaginadas e com metrô, ganharam o horrendo apelido de Baixo Pinheiros. O bar havia se modernizado um pouco, passara a oferecer refeições, mas ainda mantinha a aura decadente numa região cujo maior atrativo era a baldeação no transporte coletivo.

De lá para cá, o Baixo Pinheiros vingou. Inventaram um corredor de bares ruins na rua Guaicuí, a poucos metros do C... do Padre. Um aglomerado de arapucas turísticas, que toda cidade tem. São Paulo ganhou uma réplica da Passarela do Álcool, de Porto Seguro.

Narciso Moreno, fundador do bar, no balcão do endereço em 1995 - Antonio Gaudério/Folhapress

O entorno foi tomado por lojas de artigos para maconheiros, guerras de caixas de som e ambulantes a vender Corote para a moçadinha. O C... do Padre tirou proveito do novo fluxo de bebedores. Expandiu-se para o imóvel vizinho, espalhou mesas na calçada da igreja e se tornou um bar grande.

Um pouco esquizofrênico, preciso dizer. Enquanto a ala nova absorve os desgarrados da Guaicuí, o cantinho sexagenário do C... do Padre original permanece quase intocado. É como se fossem dois bares diferentes, para públicos diferentes. Eu sou o público do velho C... do Padre.

O diminuto espaço estava vazio quando cheguei, por volta das 18h de uma quarta-feira. O piso e o balcão são os mesmos do boteco que conheci no século passado. O teto ainda é cheio de cacarecos pendurados, expostos à fuligem.

Há apenas duas mesas, cada uma com três banquinhos feitos de engradados de cerveja. Sentei-me num deles e, quando dei por mim, estava batendo papo com um senhor que foi ao balcão comprar a camiseta do evento de aniversário.

Batidas de coco, morango e amendoim com porção de calabresa - Gabriel Cabral/Folhapress

Seu nome é Roberto Maekawa. Ele me reconheceu das presepadas que andei aprontando na TV a cabo. Presenteou-me com uma dose da cachaça que um amigo produz em algum lugar do interior –e que Roberto deixa aos cuidados do C... do Padre.

"Eu bebo aqui desde 1970", contou. Cinquenta e dois anos tomando no C... do Padre. Perguntei-lhe se as tranqueiras do teto já estavam lá naquela época. "Ih, tinha muito mais! Eles tiraram quase tudo."

Roberto então pôs-se a contar um causo. Em outubro de 1977, quando o Corinthians ganhou seu primeiro título depois de quase 23 anos, o antigo dono do bar mandou descer um provolone que estava pendurado. Na celebração do Timão, a clientela comeu de graça o queijo com sabor de escapamento de busão.

O C... do Padre, por sinal, não é um bar amigo de quem vai em busca de comida. As refeições aparecem só no almoço. As porções são monstruosas de grandes (R$ 39,90, dez pastéis) e não podem ser fracionadas –funcionam apenas para grupos numerosos.

Para quem bebe sozinho ou em dupla, oferece apenas espetinhos, churrasco no pão, sanduíche de linguiça, de pernil, de queijo e de salame. O garçom Wilson me indicou o sanduíche de pernil, que pedi com vinagrete (R$ 20). Gostoso, mas ainda era cedo para jantar e eu queria um pastel. Só um.

A coisa fica bem séria quando você vai examinar a carta de batidas –elas, e não a anatomia sacerdotal, são a especialidade da casa.

Não gosto demais de batidas, mas as do C... do Padre merecem reverência. Fiquei entre a Juma (limão com maracujá) e a Tieta (maracujá com limão), ambas a R$ 18 com Velho Barreiro. O garçom me disse que a Tieta era muito mais gostosa, eu acreditei e me dei bem. Sabor de fruta fresca, a caninha escondida lá no fundo e o açúcar surpreendentemente comedido.

O Adriano, amigo que arrastei para o C... do Padre, tem bico mais doce. Pediu a Zé Trovão (também R$ 18), de amendoim com espuma de coco por cima –a aparência remete ao colarinho de chope. Eu provei achando que iria detestar, mas gostei bastante. Os caras sabem mesmo fazer uma batida.

O C... do Padre é um bom bar, se você medir pelas batidas e pelo ambiente lindamente decrépito do salão antigo. O problema é que não dá para chegar lá sem absorver um pouco da energia podre da Passarela do Álcool do Baixo Pinheiros.