Mostra imersiva sobre Frida Kahlo em SP é puro clichê, mas a de Banksy não decepciona
Exposição sobre a mexicana dilui sua verve surrealista e não traz nenhuma obra da artista
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Frida Kahlo, pintora de dezenas de autorretratos dilacerantes, é vista por muitos como a mãe do selfie na história da arte. Seu rosto de linhas agudas, emoldurado pelas grossas sobrancelhas, tem o impacto duro e imediato de uma Marilyn Monroe como retratada por Andy Warhol, uma marca pronta, magnética, de apelo pop e de fácil consumo.
É no mínimo uma ironia que quase sete décadas depois de sua morte toda a sua vida seja esmiuçada em projeções 3D em ambientes instagramáveis montados nada menos que no estacionamento de um shopping em São Paulo, o Eldorado.
Longe do Olimpo, o que vemos em "Frida Kahlo: Uma Biografia Imersiva" é menos uma imersão na vida da artista mexicana, como promete o nome da mostra, e mais um passeio tipo parque de diversões pela superfície dos clichês que envolvem Frida, tudo reforçado com o poder do marketing —o rosto marcante dela, por exemplo, chega a ser representado em traços de luzes neon.
Frida é um ícone, sabemos, mas aqui estamos diante da manifestação mais distante de sua aura possível, uma espécie de santa do pau oco, a começar pelo fato de não haver nenhuma de suas obras reais ali.
Nem réplicas, aliás, já que as projeções mostram fotografias de Frida, radiografias de Frida, vestidos de Frida, cenários atravessados por Frida e nenhuma única obra realizada por Frida. É como se Frida fosse uma influencer que deixou nada menos que selfies como legado, como muitos dos fãs vão encarar filas e desembolsar muito dinheiro para fazer dentro da pretensa imersão. E sem esquecer a passada pela lojinha no final da visita.
É fato que Frida foi, à sua maneira, também uma influencer. Ela construiu essa imagem indelével ao longo de toda a sua vida, uma imagem, no entanto, sempre atrelada à sua obra.
A persona que criou, da Frida com os vestidos de Oaxaca como espécie de embaixatriz do ethos mexicano, e mesmo a Frida de corpete de gesso, esmigalhada pelas cirurgias que enfrentou por causa do acidente de bonde de sua juventude, é ao mesmo tempo a manifestação de uma potência plástica e uma afirmação visceral de pura feminilidade.
O problema é que o impacto brutal de sua verve surrealista, a mulher no centro de alegorias pulsantes, hoje nos chega mediada pela estranha cenografia da mostra —da sala de bolinhas coloridas de algodão à alcova onde radiografias das fraturas que sofreu no acidente ganham a sobreposição de delicadas flores, um buquê para seus ossos quebrados.
Os menos puristas talvez desdenhem dessa análise como manifestação ranzinza de quem procura algo do calibre de um Metropolitan ou Masp num estacionamento de shopping, mas Frida merecia mais.
O estranhamento, em todo caso, não se repete na mostra vizinha, dedicada ao tão famoso quanto anônimo Banksy. Ali não há decepção, não só pelo fato de haver obras reais. É algo até que no caso do britânico é possível dizer que não faz diferença, já que toda a sua obra, de ácida militância política, é feita para circular em reproduções, em redes sociais, fotos e vídeos virais.
Lá está a garotinha com o balão vermelho em forma de coração, aquela que foi triturada quando vendida por US$ 1 milhão numa performance-sabotagem do próprio artista, os policiais que se beijam, o manifestante que arremessa não um coquetel molotov mas um grande buquê de flores.
Banksy é isso, e a experiência de ver essas obras, sejam reproduzidas na cenografia de "The Art of Banksy: Without Limits" seja na forma de serigrafias de corpo presente, recompensa quem busca numa exposição a confirmação satisfatória de que, sim, esse é aquele cara que fez isso daqui.
Muitas das obras são as mesmas mostradas em Londres há dois anos, numa exposição não autorizada que causou furor —e com ingressos caríssimos, como em São Paulo.
É estranha, aliás, a dobradinha Frida e Banksy, irmanados numa operação caça-níqueis de alta voltagem. Enquanto a mexicana sai prejudicada, no entanto, o britânico se vê mais do que bem representado. Sua obra se presta a ser nada mais que superfície reluzente e chamativa, panfletos grafitados que chamam a atenção pela rapidez de leitura, como o traço na paisagem urbana exige, ancorados na mesma robustez de um meme.
Banksy, afinal, é produto de uma era em que a arte abraçou de tal forma o cinismo que é ela mesma o alvo da sátira. O desenho triturado a mando dele em pleno leilão, do qual existem muitas outras cópias, vale mais por estar destruído e a ação ter viralizado nas redes.
Sua paródia da Disneylândia, um parque de diversões em que a Pequena Sereia vive num lixão, por exemplo, reproduzido em parte na mostra paulistana, parece sublinhar isso. Arte é entretenimento. Se ela ataca, é também parte central de uma indústria que movimenta bilhões, e Banksy quer a sua parte —a ironia é que, por não revelar sua identidade, ele não pode reclamar qualquer lucro em cima de direitos autorais.
Ele alveja e se torna alvo do próprio sistema. Não se esqueça de passar pela lojinha e levar um suvenir ao final da visita.