Pandemia fecha pequenas casas de show em São Paulo e põe 'inferninhos' em xeque
Espaços que receberam nomes como Criolo e Emicida acumulam dívidas em cena ameaçada
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Um MC esgoela no microfone enquanto uma plateia se aperta para pular e cantar junto com o artista. No Morfeus Club, casa de shows e festas no centro de São Paulo, o palco é tão pequeno que o público sobe e desce dele como bem entende. As paredes suam tanto quanto as poucas pessoas que cabem ali.
O local, que recebia shows de rap e punk, não resistiu à pandemia e é mais um na lista de casas para até 500 pessoas que fechou —ou quase fechou— as portas desde o ano passado na capital paulista. Se gigantes como o UnimedHall começaram a quebrar agora, a situação das casas menores é ainda mais dramática.
A lista de lugares extintos inclui a Estação Rio Verde e o Breve. Espaços como o Ó do Borogodó e a Casa de Francisca anunciaram o fim, mas voltaram atrás para embarcar em projetos de doações, assim como a Associação Cultural Cecília, o Centro da Terra, o JazzNosFundos e o JazzB.
Em comum, todos são espaços alternativos de música, alguns considerados “inferninhos” paulistanos, que formavam um circuito que oxigenava estilos diferentes como indie, punk e MPB na cidade.
“Temos uma rede de casas de show independentes com gente do Brasil inteiro. Sabemos que uns 70% já fecharam e, no segundo semestre, é provável que existam poucas casas pequenas no país —ou nenhuma”, prevê Danilo Leonel, o Mancha. Em março, ele entregou as chaves da Casa do Mancha, espaço que mantinha desde 2007 e que o tornou conhecido na cena musical.
O lugar, que ocupava uma estreita rua em Pinheiros, marcou uma geração de artistas que despontaram na última década e deram os primeiros passos lá, como Criolo e Tulipa Ruiz.
“Antes de chegar ao Sesc, ao Coala, ao Bananada, você tem que tocar em casas de pequeno porte. São raras as exceções que já conseguem tocar num Cine Joia. A maioria esmagadora passa anos criando e amadurecendo o público e o espetáculo”, afirma.
A lista desses artistas é engordada ainda por nomes de gerações, estilos musicais e alcances diferentes, como Teresa Cristina, Emicida, Letrux, Tim Bernardes, Tiê, Kiko Dinucci, Fabiana Cozza, Luiza Lian e André Abujamra, que já passaram por esses palcos que estão em rota de extinção.
A história se repete. Os lugares já tropeçavam desde o começo da pandemia e tiveram de encarar o acúmulo de contas, o fim dos contratos de funcionários e das fontes de renda por causa do cancelamento dos shows, sem previsão de retorno.
A última cartada era retomar o fôlego após a vacinação em massa —o que ainda não aconteceu no país. Não à toa, boa parte dos fechamentos foram anunciados após o decreto da fase emergencial, a mais restritiva do Plano SP. Além disso, existe a queixa de que o Estado distribuiu auxílios ineficientes e burocráticos, que garantiram apenas uma breve sobrevida.
“Conseguimos pagar o IPTU e outras contas com o edital de premiação de espaços culturais e um tantinho da Lei Aldir Blanc. Mas o dinheiro volta para o mesmo lugar de onde veio”, diz Keren Ora Karman, diretora do Centro da Terra.
Ela diz que a entrega da contrapartida para receber os apoios, como a organização de lives, consome quase todo o dinheiro. “Entramos para movimentar a renda de pessoas e artistas que precisam trabalhar, mas não sobra para a casa.”
Outro problema relatado por Maximo Levy, do JazzNosFundos e do JazzB, e por Stefânia Gola, do Ó do Borogodó, é que eles não puderam entregar algumas das certidões pedidas pelos editais emergenciais para comprovar a ausência de débitos —justamente por estarem mergulhados em dívidas.
No caso do Mancha, todo o dinheiro da Aldir Blanc foi para o pagamento de IPTU e do aluguel, o que manteve o espaço por cinco meses. Na Associação Cultural Cecília —que já recebeu atrações internacionais, como o ex-Sonic Youth Lee Ranaldo—o dinheiro também não durou.
“Tapou um buraco que já estava fundo e ainda atrasaram para pagar, o que fez mais dívidas acumularem. Toda semana a gente pensa em fechar as portas”, diz Renato Joseph, um dos sócios da Cecília. Para eles, iniciativas como a isenção de impostos seriam mais eficazes, já que grande parte do dinheiro do incentivo vai para o mercado imobiliário.
Nesse cenário, alguns donos tratam a derrocada como algo que já estava em curso antes mesmo de 2020 e se agravou com as mudanças impostas pela pandemia, mas também falam em um desmonte político.
“O desprezo pelas pessoas ligadas à cultura já aparecia no discurso do governo federal. Claro que a pandemia não foi inventada por esses caras, apesar de ter se firmado pela incompetência deles, mas existe um projeto de aniquilação”, diz Gola, do Ó.
“Na Austrália estão voltando os shows. Na Europa, também. Não é só a pandemia, é o desgoverno”, concorda Mancha. “Quando tudo acabar, só vão existir casas bancadas por marcas. E aí a cultura passa a ser controlada em vez de ser livre”, afirma Joseph.
Com os problemas, alguns dos lugares decidiram se reerguer por conta própria. O Ó do Borogodó arrecadou R$ 291 mil em uma campanha. O JazzNosFundos conseguiu cerca de R$ 70 mil e, agora, aposta no delivery do JazzB. A Casa de Francisca pretende arrecadar R$ 125 mil por mês, e o Centro da Terra tenta angariar R$ 24 mil mensais.
Segundo a Prefeitura de São Paulo, R$ 20 milhões foram distribuídos pela Aldir Blanc a espaços culturais que tiveram suas atividades interrompidas e outro R$ 1 milhão foi entregue pelo edital de premiação de espaços culturais. Neste ano, o Edital de Apoio a Casas Noturnas e Espaços Culturais promete investir mais R$ 10 milhões no setor.
O governo do estado diz que os locais poderiam ter se beneficiado do ProAC Expresso Editais e do ProAC Expresso ICMS que, juntos, somaram cerca de R$ 158 milhões. Outro pacote de R$ 277 milhões deve ser lançado neste ano.
O Breve disse que pode reabrir no futuro, mas em outro formato. Também à frente do selo independente Balaclava, Rafael Farah e Fernando Dotta contam que uma ideia é fazer um negócio híbrido, que não dependa só de shows. Com isso, o conceito do inferninho pode estar com os seus dias contados.
Mancha, que passou quase 15 anos à frente da casa que leva seu nome, não pretende retomar o trabalho, mas quer estar presente na reconstrução —palavra muito usada pelos donos das casas. “Vai ser devagar, não é da noite para o dia. Tá todo mundo quebrado”, diz Farah.
Segundo Stefânia Gola, o encerramento dessas casas paulistanas representa o fim de espaços de acolhimento para músicos e de projetos que levaram anos para se consolidarem e criarem um circuito.
“Como você reconstrói isso? É uma derrota do poder público, que não consegue olhar para os espaços e entender que são parceiros por uma cidade mais democrática.”