Fazenda Churrascada é restaurante com alma de evento corporativo e overdose de marcas
Endereço em SP prepara boas carnes, mas escorrega na execução de acompanhamentos
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A Fazenda Churrascada não é bem um restaurante: é um ramal de um negócio de plataformas múltiplas que opera também um festival itinerante, um clube de assinatura de carnes, outro restaurante especializado em peixes na brasa e, futuramente, um projeto de turismo carnívoro no interior do estado.
Tudo começou em 2015 com o evento, a Churrascada, que contrata chefs renomados para comandar praças temáticas —sempre cozinhando com fogo, quase sempre uma comida que exala virilidade com notas de couro e fumaça de motocicleta. Neste ano, por exemplo, teve um boi inteiro espalmado, uma roda-gigante de leitões e uma aula-show de desossa de carcaça bovina.
A Churrascada é um evento caro, que cobra ingressos caros e arrecada com marcas relacionadas ao churrasco. O line-up (é assim que eles chamam) de 2022 teve 52 chefs, 42 estações e 55 patrocinadores. O ingresso custou R$ 550, com consumo livre de comida e bebida.
Por essas que a Fazenda Churrascada não é bem um restaurante. A sensação de quem atravessa a porteira da Casa da Fazenda do Morumbi, na zona oeste de São Paulo, onde a operação foi instalada, equivale a cair de paraquedas num evento corporativo.
Alguém pega seu nome, dá um cartão-comanda e orienta a seguir em frente, depois à direita, até um púlpito onde uma hostess checa algo numa tela e indica uma mesa no amplo salão com iluminação natural.
No trajeto, o cliente é exposto a mais publicidade do que o pobre ouvinte da versão grátis do streaming de música.
Na primeira triagem da entrada, vislumbra-se uma edícula de uma importadora de vinhos, um barril vermelho de uma marca de ketchup, uma chopeira com um urso e um guarda-sol preto de uma marca de picapes muito masculinas.
Na caminhada para a hostess, dá-se o encontro com a musa do guarda-sol preto: a picape dos sonhos de todos os machos, estacionada casualmente dentro do restaurante. Depois ainda se passa por uma moto inglesa, bastante veloz, mas que por sorte também se encontra com o motor desligado. E uma lojinha de produtos licenciados.
O som é alto, mecânico e másculo. Toca rock clássico e algo de country music americana. Acomodo-me de costas para a grelha e de frente para um pequeno palco daqueles onde, nos eventos corporativos, o cara do financeiro sobe meio bêbado para anunciar que a empresa bateu o Ebitda, o indicador que mede a geração de caixa de uma companhia, e que vai rolar, sim, bônus no Natal.
Mais logomarcas golpeiam a retina. Tenho o desprazer de fitar o elástico da cueca do ocupante da mesa vizinha, marotamente exibido sobre o cofrinho. Deduzo que se trata de uma peça preciosa. O mesmo cidadão ostenta a letra "D" no tênis esquerdo e a "G" no direito —não gosto de mencionar nomes, mas achei até simpático esse marketing do Dolly Guaraná #sqn.
Há quem fique relaxadão em meio à overdose de propaganda. Não sou eu essa pessoa. Apesar de detestar o ambiente da Fazenda, tenho plena noção de que ele agrada a um público numeroso nos burgos paulistanos. A comida, por sua vez, apresenta predicados objetivamente inegáveis, com deslizes na execução.
Fui à Fazenda Churrascada provar o menu sazonal batizado de "Churrascos do Mundo", com criações de pessoas internacionais e célebres nesse universo de boi, brasa e rock’n’roll. Até fevereiro de 2023, o convidado é o holandês Jord Althuizen.
Inspirado no sul dos Estados Unidos, o prato de Althuizen (R$ 170, para dois) tem short rib grelhada e flambada com uísque americano (marca declarada, claro), com manteiga de tutano e acompanhada de bolo de milho e creme de milho. Milho, milho e milho, se contarmos a matéria-prima do uísque.
Antes, chamo umas entradas com o simpático garçom Rubens. Bolinhos de costela de porco defumada (R$ 32, seis unidades) e pão de alho (R$ 24). Rubão me trata como um sábio: "Você simplesmente pediu o carro-chefe dos petiscos e o melhor pão de alho da cidade".
Ambos muito gostosos (mais o pão de alho) e ambos com um razoável problema de temperatura (mais o pão de alho, de novo). O recheio cremoso à base de queijo, alho e outros paranauês, incomparavelmente melhor do que o do pão de alho industrial, está frio no centro da baguete.
Chega, enfim, a carne do holandês —fornecida por um frigorífico que tem um açougue no restaurante etc. etc. etc.
Short rib, para quem não conhece o jargão de assador, é um corte com osso do acém bovino. Carne dianteira extremamente saborosa. Mas que, mesmo em animais de genética e manejo topzera total, não prima pela maciez.
Isto não é um esculacho com o ótimo bife do holandês, pelo contrário: apenas peça sabendo que vai precisar mastigar. A carne vem exatamente como pedida, ao ponto para menos no meu caso. Os acompanhamentos, como eu antevia, são doces demais para o meu paladar (mas tecnicamente impecáveis).
Encomendo também um arroz caldoso de costela, rico em sabor, magnata em sódio. Preciso de mais uma limonada de pão-duro: água com gás, limão espremido e gelo.
Quando solicito a conta, Rubens pergunta se eu havia aproveitado "a experiência". Sim, claro, foi ótimo comer com vista para a cueca do sujeito da outra mesa e sob um letreiro colossal de uma marca de monster truck.
Do almoço, sobra comida para alimentar pelo menos mais duas pessoas (efeito colateral de ir sozinho e profissionalmente a um restaurante), mas ninguém me pergunta se eu quero embrulhar "para o cachorro". Parece que não é fino pedir. Eu peço.
O marmitex foi entregue ainda quente (menos o pão de alho) a algumas famílias sem teto que abordam, conjuntamente, motoristas num sinal de trânsito em Pinheiros.
Um pouco antes, enquanto recebia a conta, o som varonil da Fazenda Churrascada tocava "Fortunate Son", do Creedence Clearwater Revival: "I ain’t me/ it ain’t me/ ain’t no millionaire’s son" ("não sou eu/ não sou eu/ não sou filho de milionário"). Certamente não sou eu, muito menos o Rubens, menos ainda os famintos do farol.