Descrição de chapéu Crítica
Bares e noite

Bar Filial é uma sombra do passado no meio da melancólica e decadente Vila Madalena

Reaberta com cardápio renovado, casa reencarnada pela Fábrica de Bares não é a mesma de antes

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Filial

Avaliação: Regular
  • Onde: Rua Fidalga, 254, Vila Madalena, zona oeste, tel. (11) 3813-9226
  • Instagram: @barfilial

A memória é traiçoeira, e usá-la como parâmetro de comparação pode ser cruel. Inevitável, porém.

Cheguei ao Filial ciente de que minhas impressões seriam confrontadas com as lembranças do bar mais importante da minha vida, em que bati cartão por uma década.

Se fizesse as contas do dinheiro que deixei no Filial desde o ano 2000, quando o bar abriu, entraria em depressão por ter jogado minha aposentadoria pelo ralo da chopeira. Mas tudo bem: sou de humanas, não sei calcular, então não sofro.

Fachada do Filial, bar da Vila Madalena que voltou a funcionar em janeiro - Divulgação

Na primeira década deste milênio, o Filial travava toda noite a esquina das ruas Fidalga e Aspicuelta, na Vila Madalena. Eu trabalhava na Marginal Pinheiros e morava —ainda moro— em Perdizes, com o boteco bem no meio do caminho.

Muitas foram as noites em que, voltando da Redação, passava no Filial só para dar um "bizu". Se não tivesse nenhum amigo por lá, seguia o caminho da roça. Mas quase sempre tinha.

O Filial era o bar da minha turma. Dos jornalistas, dos designers, dos fotógrafos, de gente que trabalhava com comunicação e arte, mas não sabia muito bem definir a própria ocupação.

Sentávamos, recebíamos um chope atrás do outro sem precisar pedir, pagávamos pau para o doutor Sócrates na mesa ao lado, parávamos tudo para escutar a canja do Yamandu Costa nos fundos do bar.

Éramos expulsos na alta madrugada, com as cadeiras já empilhadas nas outras mesas, mas não antes do show do Lauro, meu amigo mineiro. Ele pedia, implorava, exigia uma saideira grátis. O garçom, louco para nos ver na rua, cedia e mandava uma rodada de chopes garotinho.

A comida era boa, nada espetacular. Bolinhos de arroz bem fritos, caldo de feijão com torresmo, uma coxinha gostosa que sempre estava fria no meio. Pouco importava. O importante era o espírito do bar.

A turma se desmantelou, assim como a Vila Madalena, e deixei de frequentar o Filial. O bar passou por anos difíceis, fechou na pandemia e reabriu no ano passado sob a gerência da Fábrica de Bares –grupo especializado em recuperar marcas tradicionais da bebedeira paulistana, como o Bar Léo e o Bar Brahma.

Eu temia que, reencarnado, o Filial tivesse a mesma sina do Léo e do Brahma: a perda da personalidade, do espírito. Queria ficar quieto no meu canto, mas voltei meio a contragosto porque o Guia me pediu este texto.

Ao descer do Uber, às 18h18 desta terça-feira (22), dei de cara com o Leandro, amigo daqueles tempos do velho Filial, na única mesa ocupada do bar. Seria um presságio?

Juntei-me a ele e à colega que o acompanhava. Pedi um chope (R$ 9,49), ganhei uma comanda individual e um copo rabo-de-peixe. Em outros tempos, o chope vinha na caldereta. A contagem dos copos entornados era na base de uma caótica pilha de bolachas de papelão depositadas a cada serviço.

Leandro e a colega foram embora, chegaram os dois amigos com quem havia combinado encontrar. Ambos, tiozões da época em que o Filial era nosso primeiro lar.

Chegou a caipirinha (R$ 18). Boa. Chegou também a coxinha (R$ 11). Mais crocante do que a antiga (empanada com panko?), fria no meio para manter a tradição, sabor idêntico. Sobrenatural. Chegaram um competente churrasquinho com queijo no pão (R$ 23,90), uma empada de rabada (R$ 27) gigante e meio sem graça, uma deliciosa porção de coxinhas de pato (R$ 48).

O cardápio do novo Filial é assinado pelo talentoso Romulo Morente, do bar Moela. A comida não está pior do que antigamente, talvez esteja melhor, mas pouco importa. O importante é que não estávamos no mesmo bar.

O interior foi minimamente modificado. Mantiveram as mesas com tampo de pedra, o chão quadriculado, as caricaturas e os anúncios antigos na parede.

Na vidros que dão para a cozinha, a caminho do banheiro, enfiaram inexplicáveis frases motivacionais de loja popular de decoração. "Comer é uma necessidade, cozinhar é nossa paixão." Afe.

O garçom que nos atendeu, o Café –Áureo Café Paixão, que nome lindo, meus amigos!–, era a simpatia em pessoa. Taí um ponto em que o novo Filial se conectou à sua história: o serviço carinhoso.

O resto, e não me refiro apenas ao bar, não ajuda muito. Fomos os únicos clientes até as 19h45, quando outras duas mesas chegaram simultaneamente.

"Mas é terça-feira e está cedo", argumentou um dos amigos. "Mas aqui bombava todos os dias, o tempo todo", contra-argumentamos eu e o outro amigo. Que dirá numa noite quente de fevereiro.

Bolovo de bacalhau é novidade no menu do Filial - Thays Bittar/Divulgação

Do outro lado da rua ficava o Genésio, que os donos do Filial abriram para acomodar a clientela excedente. Servia comida italiana passável. Tinha o mesmo espírito, a mesma vibe da calçada em frente. Agora é um bar francamente inferior, desses com promoção permanente de caipirinha em dobro.

Caminhamos pelas ruas ermas da Vila para tomar as saideiras no Empanadas, que estava igualmente melancólico.

A conversa enveredou pela nostalgia. Falamos de como fomos atropelados pelo tempo. Todos nós. O Filial. A Vila Madalena. Os três amigos. Dois cinquentões e um chegando lá. Marcos, Renato e Ricardo. Três nomes datados que hoje batizam meia dúzia de bebês por ano, quando muito.

O Filial da minha memória não está lá. A culpa não é da Fábrica de Bares nem de ninguém.

É só o tempo levando as coisas embora. Inevitável.