Próximo à estação Vila Madalena do Metrô, na zona oeste de São Paulo, um sobrado de dois andares iluminado por luzinhas coloridas é cercado por mesas e cadeiras de madeira ocupadas por pessoas e garrafas de cerveja. Pregado na porta, um cardápio feito à mão com caneta colorida e glitter sugere algumas opções para forrar a barriga. Do lado de dentro, geladeiras dividem espaço com prateleiras preenchidas com livros à venda. Uma caixa de som toca músicas de artistas como Mano Brown e MC Serginho.
Esse é o clima intencionalmente informal da nova Ria Livraria, que já funciona há algumas semanas como loja de livros, café e bar, mas que só foi inaugurada oficialmente em 1° de novembro. O espaço marca, ao mesmo tempo, uma nova fase e o desfecho da complicada história recente da Mercearia São Pedro —reduto boêmio paulistano que tem o destino incerto desde agosto.
Quem comanda o novo Ria é Marcos Benuthe, um dos donos da Merça —apelido dado ao local pelos habitués. Ainda em disputa judicial com Pedro, seu irmão e outra metade da sociedade do bar, Marquinhos, como é conhecido, decidiu investir em um lugar próprio, mas que levasse suas partes preferidas do negócio que ajudou a tocar nas últimas décadas.
"No começo, a Mercearia também era locadora de filmes e vendia livros. Esse lado cultural sempre fui eu que puxei, e foi o que também atraiu o público que frequentava o bar. Então a livraria é a ‘filha bastarda’ da Mercearia, um lugar físico que dá continuidade a essa parte cultural", explica Marquinhos, que diz que "criar uma livraria que fosse chamada de boteco" é uma vontade antiga.
Assim, se juntou a parceiros como os escritores Morgana Kretzmann e Ian Uviedo —que, inclusive, frequentava o Merça na infância, com a mãe— para montar uma curadoria de livros para o Ria. Agora, a seleção gira em torno dos mil títulos, mas deve chegar a 5.000.
Além do escritor J.P. Cuenca, que aproveitou a inauguração do Ria para fazer o lançamento presencial de seu novo trabalho, "Qualquer Lugar Menos Agora: Crônicas de Viagem para Tempos de Quarentena", nomes como Jack Kerouac, James Baldwin, Patti Smith, Paulo Leminski e Chimamanda Ngozi Adichie assinam algumas das obras à venda na casa, que também tem uma seção dedicada aos quadrinhos.
"O Ian, que é nosso livreiro, trouxe muita coisa de editoras independentes e também fez um mix das maiores editoras. Temos uma prateleira de autores contemporâneos, muitos deles nossos amigos", diz Marquinhos. Segundo ele, a parte de cima da casa ainda será dedicada a formatos como os fanzines, além de sediar cursos e clubes de leitura.
No que diz respeito ao seu lado boteco, o Ria tem na equipe funcionários que trabalhavam na Mercearia e que, de acordo com Marquinhos, foram demitidos pelo irmão durante a pandemia. Estão lá o chapeiro Antônio, encarregados dos sanduíches, Penha, que fazia os disputados pastéis na Merça, e o garçom Rodrigo. "É uma alegria imensa tê-los de volta, conseguir trabalhar em parceria com as pessoas", comemora.
Em meio a cumprimentos de amigos que chegavam para a inauguração da nova casa, Marquinhos diz que não tem mais nenhuma relação com a Merça, que no momento é tocada apenas por Pedro. "Ele prefere ficar lá com o bar decadente, prestes a fechar", diz. "Ele tomou a empresa para ele e eu pensei ‘não vou terminar a vida como sempre fui, submisso ao meu irmão'."
Em agosto, Marquinhos disse que o imóvel ocupado pela Mercearia —que é da família— seria comprado pela construtora Even, que usaria o terreno para um empreendimento imobiliário. O irmão Pedro negou que o bar fecharia e a construtora afirma que não há negociação, mas Marquinhos insiste que há um contrato de pré-venda e que, inclusive, estaria recebendo alguns adiantamentos pela venda.
Há, ainda, alguns processos entre os irmãos em andamento. Em 4 de agosto, por exemplo, a Justiça de São Paulo determinou a venda de outros três imóveis que pertencem à família Benuthe —todos localizados na rua Rodésia, vizinhos à Mercearia.
Além disso, há uma disputa em relação ao uso do número 30 da mesma rua Rodésia, um local conhecido como Anexo, colado à Mercearia, e outro processo de dissolução de sociedade. Enquanto essa novela não chega ao fim, o dono da mais nova livraria de São Paulo e seus amigos comemoram a inauguração. "À vitória do Marquinhos", brinda um deles, com um copo de cerveja nas mãos.
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