Para a estreia do longa-metragem brasileiro “Pacarrete” no município cearense de Russas, em dezembro do ano passado, 400 cadeiras foram colocadas em uma praça, em frente a um telão. No fim da exibição, cerca de 3.000 pessoas aplaudiam o filme.
Mas o sucesso da produção, que chega aos cinemas paulistanos nesta quinta-feira (26), pouco teve a ver com os oito prêmios Kikito que ela havia conquistado meses antes no Festival de Gramado. A responsável por encher a praça foi a protagonista do filme e também a personagem mais marcante de Russas.
Foi costurando memórias de infância e casos contados por pessoas com quem conviveu por boa parte de sua vida que o diretor Allan Deberton contou a delicada história de Maria Araujo Lima (1912-2004)—mais conhecida como Pacarrete—, que viveu como bailarina profissional e professora de dança, educação artística e educação física em Fortaleza, mas que passou suas últimas décadas de vida tida como louca em Russas.
Deberton, que nasceu na cidade cearense, diz que a primeira lembrança que guarda da mulher ajuda a resumir a reputação dela cidade. Na saída da escola, ele e seus amigos brincavam frequentemente de tocar a campainha da casa da ex-dançarina, até que um dia foi flagrado. Teve que fugir ao som dos berros e xingamentos com os quais os russanos já estavam acostumados.
“Ela gritava que ia contar tudo para a minha mãe. Nesse dia, eu fiquei escondido no quintal de casa e todo mundo me dizia que eu deveria me manter distante, porque a Pacarrete ia me bater com a vassoura”, conta o diretor, que decidiu fazer um longa de ficção sobre a mulher, interpretada no cinema por Marcélia Cartaxo.
Não era só com os moleques arteiros que a cearense gastava a garganta. Era comum escutá-la gritando com quem pisava na calçada que ela esfregava religiosamente em frente a sua casa. Ali, ao lado de uma vitrolinha e ao som de músicas clássicas e francesas —idioma que ela fazia questão de mostrar que dominava, abusando dos estrangeirismos em suas conversas—, ela observava o movimento ao lado de seu cachorro e xingava os motoristas que ousassem bloquear a sua visão.
O diretor se lembra que, em certo momento, o nome Pacarrete começou a ser usado como adjetivo. “As pessoas usavam para dizer que algo era diferente, doido. Só depois que ela faleceu que eu soube que significava margarida em francês, que era uma flor que ela gostava de usar no chapéu. Isso foi o suficiente para perceber que, durante a minha vida inteira, eu não sabia quem ela era”, diz.
A partir daí, ele passou 12 anos mergulhado no universo da ex-bailarina, num processo que, antes de ser fictício, foi documental. “Fui entrevistar pessoas que a conheceram e todo mundo me dava duas visões. Uma era de como a cidade a via, como uma mulher perturbada. A outra era de excelentes memórias afetivas, sutilezas, colocando-a num lugar muito doce.”
Ao longo do filme, Deberton homenageia a figura excêntrica que povoou seu imaginário infantil e, ao mesmo tempo, a conduz em sua redenção. De louca, ela passa a ser vista como uma mulher à frente de seu tempo, que queria levar para casa o que aprendeu na capital, mas foi brutalmente ignorada.
“Ela era muito culta, verborrágica, dançava na festa da cidade, puxava Carnaval, queria construir teatros. Era uma espécie de Dercy Gonçalves de Russas. Tudo isso foi confundido pelas pessoas e virou um preconceito”, explica.
O cearense entende que a personalidade rabugenta nasceu justamente dessa incompreensão da cidade que ela queria ver progredir. Seus desabafos públicos mais frequentes falavam de injustiça. “Ela sempre gritava na praça que as pessoas não a valorizavam, que ela era incompreendida como artista e que um dia falariam dela. Era como se ela esperasse que alguém fosse sua testemunha”, diz Deberton.
Quinze anos depois da morte de Pacarrete, Russas enfim a compreendeu. “A cidade ficou muito emocionada [no dia da exibição], foi quase um soco no estômago. As pessoas se colocaram no lugar dela e prestaram atenção no outro lado dessa mulher que tinha fragilidades, medos e sonhos que queria realizar”, completa o diretor.
Veja salas e horários
Pacarrete
Brasil, 2019. Direção: Allan Deberton. Com: Marcélia Cartaxo, Zezita Matos e João Miguel. 98 min. 12 anos.
Grande vencedor do Festival de Gramado do ano passado, é inspirado na história real de uma bailarina aposentada que, ao ao voltar à sua cidade natal no Ceará, encontra resistência aos seus modos de ver a vida.
Salas e horários.
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