Os créditos iniciais de "Casa de Antiguidades", novo filme de João Paulo Miranda Maria, muito lembram o início de "Compasso de Espera", único longa de Antunes Filho. Assim como no filme de 1973, a discussão racial é antecipada pelo letreiro, que, em forte contraste, surge preto sobre um fundo branco.
O nome de Antônio Pitanga é apresentado em tela dessa forma. E sua primeira aparição no filme segue a mesma ideia.
Ele surge de pé, no meio de uma branquíssima fábrica de laticínios, usando uma roupa de proteção prateada com ares de ficção científica. Um furo preto na luva o preocupa –provável referência a esse personagem goiano e boiadeiro, descrito como negro e indígena, que vai trabalhar numa cidade de Santa Catarina, no sul do país, colonizada por imigrantes austríacos.
"Casa de Antiguidades" parece confiar muito nesse tipo de simbologia para denunciar a violência racista. O problema é que, na insistência para registrar signos raciais, literais e metafóricos, tanto da negritude quanto da branquitude, o filme aposta em soluções simples, que eliminam complexidades e transformam personagens em arquétipos.
Isso ocorre principalmente com Cristovam, protagonista interpretado por Pitanga, mas também com os demais personagens. Os austríacos donos da fábrica, por exemplo, só existem na frieza do registro e na dureza de sua língua. Eles permanecem falando alemão mesmo diante da incompreensão de seus interlocutores, no reforço dessa hierarquização social na qual a comunicação entre classes é apenas possível pelo desprezo.
Numa das cenas, eles defendem a independência da região sul do país —e fazem questão de incluir São Paulo nessa nova república, enquanto proferem ofensas racistas e xenofóbicas ao resto do Brasil. Noutra, o número 17 é pichado na casa que o protagonista transforma em lar, numa gritante associação ao partido que elegeu o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, em 2018.
Por mais que tais representações reforcem a distância que separa aquela comunidade e o personagem principal, falta sutileza ao filme na construção de sua denúncia.
Essa dificuldade de complexificar o discurso também aparece no modo como o próprio Cristovam é enquadrado. Parece existir uma dificuldade para encará-lo frontalmente. Mesmo nas cenas em que é o foco narrativo, constantemente ele aparece de costas, quase sempre pesaroso. A decisão estética reforça a brutalidade dos absurdos cometidos contra o personagem, mas, na via inversa, também dificulta a criação de uma relação mais forte com o espectador.
Não que não seja bem-vinda a contenção do protagonista. É interessante ver essa oposição entre a atuação de Pitanga, hoje com 83 anos, e os personagens explosivos e contestadores que o ator interpretou na história do cinema.
Mas nessa falta de agência que o roteiro preza durante boa parte da narrativa, o protagonista acaba sendo reduzido à posição de vítima que pouco reage diante dos ataques sofridos.
Sua resistência está no olhar, profundo, intrigante e reluzente, e na relação que mantém com sua ancestralidade boiadeira. Ao colocar o berrante, uma bota de vaqueiro e uma foto de família em cena, o filme evidencia a relação de respeito e identificação que Cristovam mantém com sua herança, que não encontra eco naquela região separatista.
É nessa tradição que o filme esbarra no sobrenatural, num flerte que poderia ter sido frutífero. Entretanto, novamente o excesso de simbologia barra as condições para que a representação dessa ancestralidade finque raízes na subjetividade do protagonista.
Não basta, por exemplo, colocar uma máscara de boi e adicionar à trilha sons de tambores que remetem à cultura afro-brasileira para construir pontes entre a luta solitária e a resistência histórica de uma comunidade negra. Nessa alegoria exagerada, todo o discurso fica raso demais.
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