Zélia Duncan faz CD "inebriante" com músicas de Itamar Assumpção; leia entrevista

"Em certa época da minha vida, tudo o que eu mais queria ser era backing [vocal] do Itamar. Eu tinha muita inveja daquelas meninas!"

Zélia Duncan descreve sua paixão por Itamar Assumpção (1949-2003) assim: incisiva, bem-humorada. Com ares de quem fala sobre um presente há muito aguardado.

Crédito: Gal Oppido/Divulgação Zélia Duncan (foto) lança novo disco, "Tudo Esclarecido", em série de shows no Sesc Pinheiros a partir de quinta (dia 3)
Zélia Duncan (foto) lança o disco "Tudo Esclarecido" em série no Sesc Pinheiros, a partir de quinta (dia 3)

Símbolo de uma geração artística que ficou conhecida como a "vanguarda paulista" nos anos 1980, Assumpção é o autor das 13 canções do disco "Tudo Esclarecido", décimo trabalho de estúdio da cantora fluminense.

Ela lança o álbum em série de oito shows a partir de quinta-feira (dia 3/1), no Sesc Pinheiros (zona oeste de São Paulo). Os ingressos custam de R$ 8 a R$ 32 e estão à venda nas bilheterias das unidades do Sesc.

O compositor representou papel duplo na vida de Duncan: primeiro, o de ídolo e inspiração artística. Depois, de parceiro musical e amigo.

Uma trajetória que, como não poderia deixar de ser em se tratando do "Nego Dito", evoluiu por caminhos pouco ortodoxos. "Levamos anos até ficarmos amigos; o Itamar não era um homem de tapinha nas costas."

Gravado no Rio de Janeiro, longe do habitat paulistano fartamente cantado por Assumpção, o disco se beneficiou de um fazer pouco cerimonioso, segundo a cantora.

"Costumo dizer que tem algumas coisas na vida que é só você não estragar. É um álbum inebriante, e nisso não estou me autoelogiando, mas sim elogiando a obra. Não tem nada jogado fora, nada para completar. Tudo o que o Itamar diz é pensado, relevante, engraçado, intrigante."

Informe-se sobre os shows e confira, a seguir, a conversa com Duncan.


"GUIA": Você já havia gravado músicas do Itamar ao longo da carreira. Por que um disco com canções dele agora?
ZÉLIA DUNCAN: O universo do Itamar Assumpção é bastante natural para mim, convivo com isso desde o começo dos anos 1980. Faz uns dez anos que prometo esse disco. Mas enquanto ele não vinha, eu nunca consegui não gravar canções do Itamar. Até convidada por ele mesmo, no disco "Dor Elegante", depois no "Preto Brás 3", aquela caixa linda. Ao todo foram 11 músicas antes dessas 13 de agora.

Quando fiz 30 anos de carreira, brinquei comigo mesma que me daria três presentes. O Itamar é o último deles. Decidi que era a hora e pronto. A gente não precisa sempre de porquês.

O que mudou em gravar no Rio de Janeiro?
Estou bastante feliz por ter feito no Rio. Porque sempre gravo em São Paulo, sou muito ligada aos artistas e produtores daí. Mas a escolha do Kassin foi muito feliz.

Além disso, no Rio o Itamar não é a referência que é em São Paulo. Acho que isso deu um frescor ao disco. O Kassin, que é um pesquisador, até conhecia alguma coisa. Já os músicos, com exceção do [Marcelo] Jeneci e do Christiaan [Oyens, parceiro de Duncan ao longo da carreira], praticamente não conheciam nada. Então teve esse negócio da pouca cerimônia para abordar a obra dele.

E também a surpresa de ter uma puta música legal nas mãos. A genialidade do Itamar está nas coisas pequenas: nos poucos acordes, no ritmo, na maneira de compôr e no jeito genial de lidar com as palavras. Foi emocionante presenciar essa surpresa no estúdio.

Em cinco dias gravamos o disco inteiro, quase nada de "overdub" [registros separados, gravados sobre uma base previamente registrada], um trombone, nada além disso... Tudo ao vivo.

Crédito: Gal Oppido/Divulgação
Fã, parceira musical e amiga de Itamar Assumpção, Zélia Duncan (foto) lança disco em homenagem ao icônico compositor

E qual a diferença do trabalho ao vivo?
Quero crer que as pessoas que gostam de ouvir música de verdade vão perceber a liga e a sonoridade ao vivo. Tem também o lance meio "vintage". O disco parece antigo em alguns momentos.

Como você escolheu as participações?
Resolvi chamar dois caras que não deixam dúvidas sobre sua excelência. O Ney Matogrosso, um artista completo e singular que já gravou muita coisa do Itamar, e cantou "Isso Não Vai Ficar Assim". E o Martinho da Vila, um mestre negro e ensolarado, que aceitou gravar "É de Estarrecer" com muito entusiasmo. Ele já tinha muito respeito pela obra do Itamar, eu não sabia. Esse envolvimento das pessoas e essa espontaneidade na abordagem aparecem na gravação.

Você teve medo de mexer com algo tão poderoso como a obra do Itamar?
Meu disco é uma gota no oceano da obra do Itamar. Costumo dizer que tem algumas coisas na vida que é só você não estragar. Se não estragar, já contribuiu. O que seria estragar? Seria achar que tem que fazer uma leitura tal, não sei como... [voz de enfadonho] O lance foi achar a naturalidade da composição. Se o Itamar estiver ouvindo, acredito que ele esteja gostando.

E como foi o trato com os arranjos dos músicos?
Também foi bastante espontâneo. Eu sei delegar muito bem. Demoro para escolher porque quero as melhores pessoas para aquele momento, mas, uma vez escolhidas, se eu tiver que errar, vou errar bonito! [risos] Fiquei muito feliz de ver como esse time lidou com a música. E estive presente desde o começo. Inclusive mostrei para eles algumas músicas pela primeira vez tocando ao violão, o que já imprime a minha visão.

Quando você faz um trabalho, você está levando seu caminho com ele. São 30 anos meus, mais não sei quantos anos do Kassin [produtor do álbum], e por aí vai. A gente escolheu músicos criadores, que trazem contribuições absurdas. Riffs lindos, melódicos. Não são músicos prolixos, que, cá pra nós, é um troço muito chato. Aquela linguagem do "Olha como eu toco pra caramba". Pelo contrário, foi a linguagem do "Olha a música que eu trouxe para você ouvir" ao invés de "Olha como eu canto pra cacete". Porque isso é muito chato. Muito chato. Extensão vocal não quer dizer nada, assim como um solo de 500 notas em três segundos também não quer dizer nada. A não ser que você seja um Hamilton de Holanda, que é um cara raro. E inclusive já trabalhei com ele e ele gosta de solos melódicos, gosta de música mais do que de malabarismo. Você pega o Pedro Sá, os solos dele são incríveis, são contações de histórias, e o Christiaan Oyens, um grande músico, meu eterno parceiro, toca "slides" incríveis.

Quando e como você teve contato com a produção desses artistas? Imagino que não tocavam nos rádios ou nos programas de televisão.
Eu morava em Brasília e tenho um irmão mais velho que era megaligado em tudo, comprava muitos LPs. Ele começou a me mostrar, e eu comecei a frequentar uma cena de música independente. Eu procurei. Não é como hoje em dia... Se bem que a internet é uma faca de dois gumes, está tudo lá, mas se você não souber procurar, não vai achar do mesmo jeito, né? Antigamente era isso, mas fora de casa. E como eu morava longe dos pólos mais importantes, que são Rio de Janeiro e São Paulo, era uma aventura. Eu sou de uma geração que ficava muito excitada com a possibilidade de encontrar um disco em uma prateleira. Eu ia à luta. Comprei "Beleléu" na época que saiu, "Sampa Midnight". Acompanhou a minha adolescência.

E no desenrolar da sua carreira, como você passou de fã a colega deles?
Super fã. Eu digo e é a pura verdade: tudo o que eu queria em certa época da minha carreira era ser backing [vocal] do Itamar. [risos] Eu tinha muita inveja daquelas meninas. [risos] E não tem essa de inveja branca, não! Era inveja mesmo! Hoje a Suzana Sales é minha amiga, uma cantora que admiro profundamente, e ela era uma delas, estava sempre perto dele, isso me deixava louca!

Quando estourei, em 1995, com "Catedral", eu já cantava há muitos anos e me vi em uma situação nova. Todo mundo quer saber qual o desodorante que você usa, coisa e tal. E quando chegava na pergunta clássica sobre influências, eu, inserida em um contexto de música da novela, abria a boca e dizia: "Itamar Assumpção." E todo mundo ficava com uma cara de surpresa.

E eu falava tanto que um dia o Itamar me ligou. A gente tinha alguns amigos em comum, ele tinha como chegar até mim. Quase tive um infarte! Ele estava lançando o "Bicho de Sete Cabeças", três LPs. Eu já tinha os três na minha casa! E a música que eu mais gostava era "Vou Tirar Você do Dicionário". E esse maluco me ligou e disse: "Queria saber se você quer cantar comigo 'Vou Tirar Você do Dicionário' no Sesc Pompeia."

E ele já sabia que era sua favorita?
Não, não! Não tinha como saber. Foi uma coisa maluca. Respondi que sim, claro. E fui para São Paulo. E começou a minha história com o Itamar. Uma história que não foi fácil. Eu paguei minha passagem e hospedagem, ele não quis saber, só marcou o dia do show. Eu, como uma discípula obediente, me mudei para São Paulo, cantei com ele no Sesc Pompeia, foi demais. E não ficamos amigos ainda! [risos] Ele continuou me ignorando um pouco, ainda me olhava com certa desconfiança. Não era um cara de tapinha nas costas. Aí gravei "Vou Tirar Você do Dicionário", primeira música do Itamar que gravei, inclusive é uma gravação muito bacana, Lenine no violão...

Depois gravei outras canções dele, e o convidei para cantar comigo em um show muito importante para mim no Memorial da América Latina, ele e a Ná Ozzetti. Lotado. Alí ele viu que minha paixão por ele era séria e começamos a ficar amigos. Ele cantou no Canecão comigo, no Palace, em Itaquera, fizemos um monte de coisas juntos, me chamou para gravar com ele. Mas estou te contando resumidamente uma história que demorou vários anos. E depois, quando já estava no fim, descobri que ele fizera para mim essa música "Zélia Mãe Joana". Que é a última do disco.

Que é fantástica, aliás.
A Serena, filha dele, diz que é uma arma e um escudo que ele me deu. Porque a gente tinha uma brincadeira, ele me dizia: "Você é muito boazinha". E eu dizia "Não sou boazinha! Detesto que você me chame de boazinha!". Nossos universos eram muito diferentes. Fiquei surpresa, ele nunca tinha dito nada. Cheguei a gravar essa música com ele em uma demo. Ficou guardada comigo durante anos, e agora quando mostrei para o Kassin ele enlouqueceu, disse que tinha que estar no disco. Mesmo porque, modéstia às favas, é uma música que o Itamar fez para mim!

É uma boa surpresa também para o ouvinte desatento.
Sim! Tem gente que vai ficar horrorizada, também... Minha diretora do show, a Bel Teixeira, me instiga a cantar essa canção com uma certa sacanagem em todos os sentidos. Ela chega a ser meio malvada e sexual. Assim como é sensual a gravação com o Ney [Matogrosso], a alegria e a sensualidade do Ney, dizendo "Beije-me". Agora você imagina o Ney no estúdio te olhando nos olhos e dizendo "Beije-me". Isso é uma ordem! [risos]

É um disco inebriante, e nisso não estou me autoelogiando, mas sim elogiando a obra. Não tem nada jogado fora, nada para completar. Tudo o que o Itamar diz é pensado, relevante, engraçado, intrigante. Outro dia ouvi "Tua Boca" no rádio pela primeira vez, fiquei superemocionada, e a moça anunciou como "A provocante nova canção de Zélia Duncan". É um disco para ouvir com leveza, mas sem superficialidade.

Você mencionou há pouco se dar três presentes. Imagino que os outros dois foram o DVD "Pelo Sabor do Gesto" e o projeto "To Tatiando".
Exatamente. Realizei meus três presentes e estou muito feliz. O DVD gravado no Teatro Municipal de Niterói, minha cidade, e o show do Tatit. Você viu o show?

...eu não vi!
Não tem vergonha não?! [gargalhadas]

Tenho!
Estou brincando com você. Esses dois projetos se encontraram sem querer. O "To Tatiando" demorou um ano para sair, foi o tempo que demorou para buscar patrocínio, e nesse período eu gravei o Itamar. Agora estou batalhando para apresentá-los juntos, algum tipo de temporada conjunta.

Aqui no Rio eu me surpreendi muito com o "To Tatiando", porque o [Luiz] Tatit é muito paulistano, mas meus colegas e todas as pessoas entraram muito na onda. Eu queria mesmo que todo mundo mergulhasse na obra dele, que não é só de São Paulo, é universal. E mesmo São Paulo não conhece o suficiente...

E o show do "Tudo Esclarecido"?
Está muito caprichoso. Envolvi muita gente do teatro, e estou encantada com isso. A diretora, Bel Teixeira, esteve presente em todos os meus ensaios musicais, me observando e à banda. Ela bolou uma coisa linda. O nome do álbum é "Tudo Esclarecido". Aí o show começa no pôr do sol, depois vai para aquela noite baixa, mais rasteira, que vai até mais ou menos três da manhã. Nessa hora a noite está alta, em todos os sentidos. Você já passou por certas coisas, está mais purificado. Depois amanhece.

Essa teatralidade não significa que vai ter coisas cafonas tipo "Ah, agora a Zélia vai aparecer descendo escadarias vestindo um 'scarpin'...". Não, é a velha Zélia lá. Mas tem algo diferente. É muito rico o que vai acontecer nessas duas semanas no Sesc Pinheiros.

E uma coisa importante a dizer: o show é só Itamar Assumpção, do começo ao bis. Nenhuma concessão será feita. Acrescentei às canções do disco algumas outras dele que eu já havia gravado e é só.

Esse eu não vou perder.
Por favor, hein! Vá à estreia. Porque o único dia inédito da minha vida são as estreias, depois o YouTube acaba com tudo. Acaba no bom sentido, porque eu mesma sou uma devoradora de YouTube. Mas é que eu adoro o primeiro impacto. Fico enchendo o saco dos meus amigos para verem a estreia.

E durante a estreia você consegue sentir a reação das pessoas ou fica muito absorta?
Certamente. Por mais ensaio que tenha, por mais preparo, o show só amadurece com o ouvido alheio. Às vezes, no tipo de silêncio [do público] você já se comove e percebe que as pessoas estão te ouvindo.

Principalmente na era do smartphone, não? Toda a dispersão.
Com certeza. Ainda acredito no silêncio que a gente precisa fazer para ouvir música. Eu mesma falo muito, né?

Ainda bem. Entendi que não foi uma coisa planejada, um resgate premeditado de um ídolo. Mas será que te sobrou alguém a resgatar?
Não cara, por enquanto não. Tem muitas coisas que eu cultuo, mas dessa vez eu exagerei, mesmo. Esses dois caras sempre alimentaram minha vida e agora minha energia está toda neles. É um jeito de dizer obrigada para São Paulo e para eles. São meus pilares.

E para 2013? Trabalhar esses dois shows?
Intensamente, intensamente. É o que tenho a fazer. Já gravamos um DVD do "To Tatiando" no Tuca, lindo de morrer, vai ser lançado, e esses dias ouvi o áudio para ver se valia a pena ser lançado, e funciona, mudei de ideia, vai ser lançado também. Fico muito feliz de ver as pessoas ouvindo Tatit. Quem sabe um dia a gente não ouça a voz da plateia cantando esses caras?

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