Filme inspirado em canção de Chico Buarque é "quase de terror", diz diretor

O que fazer quando a pessoa que você mais gosta e que vive ao seu lado manda uma mensagem (sim, mensagem) dizendo que não sente mais nada e que foi embora de vez? Chorar sem parar? Ir atrás? Sair sem rumo? A mulher do longa "Abismo Prateado", Violeta, interpretada por Alessandra Negrini, não sabe como agir, e o público não sabe o que esperar de suas ações.

"O filme tenta traduzir a sensação de alguém que acabou de ser abandonado", conta o diretor Karim Aïnouz, que construiu a história toda usando como base a música "Olhos nos Olhos", gravada em 1976 por Chico Buarque. Ele diz que a intenção do projeto era "ser a tradução de um trauma amoroso, quase um filme de terror".

Crédito: Daryan Dornelles Karim Aïnouz (à esq.), Alessandra Negrini (ao centro) e Chico Buarque, que fez a música que inspirou o filme
Karim Aïnouz (à esq.), Alessandra Negrini (ao centro) e Chico Buarque, que fez a música que inspirou o filme

Os outros personagens --vividos por Carla Ribas, Gabi Pereira e Thiago Martins-- cruzam o caminho da protagonista para mexer ainda mais com seu estado vulnerável, para o bem ou para o mal, ajudando a definir como será daqui por diante. Otto Jr., que faz o marido, aparece na primeira parte do filme e cria o clima dramático que está por vir.

"Abismo Prateado" foi o vencedor da categoria melhor diretor no Festival do Rio e faturou os prêmios de melhor atriz, som e fotografia no Festival de Havana. Esse é o quarto filme de Karim Aïnouz, que também dirigiu "Madame Satã", "O Céu de Suely" e "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo".

No bate-papo abaixo, o diretor conta detalhes sobre o filme e diz que preferiu não falar com Chico Buarque durante a elaboração do roteiro para "não saber muito mais além da própria canção", e poder, assim, criar tudo livremente. O músico ainda não assistiu ao longa, mas verá a história em breve, em uma sessão especial. A estreia será nesta sexta-feira (dia 26).



LETRA DE "OLHOS NOS OLHOS"

Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando, sem mais, nem por quê
Tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz


ENTREVISTA COM O DIRETOR KARIM AÏNOUZ

Guia Folha - Karim, você chegou a conversar com Chico Buarque sobre o filme?
Karim Aïnouz - Conheci o Chico logo antes de o filme ficar pronto, logo antes de a gente ir pra Cannes. Foi um encontro rápido, uma honra. Mas conversamos pouco com relação ao filme. Ele sempre foi muito respeitoso com relação ao processo de adaptação. Do meu lado, preferi, durante a elaboração do roteiro, não saber muito mais além da própria canção, da música, não saber muito sobre o entorno, pra que a gente pudesse ter liberdade de imaginar, de imaginar quem escreveu a canção, pra imaginar Violeta, a mulher que "ficcionalmente" foi deixada pra trás e que escreveu uma carta de amor chamada "Olhos nos Olhos".

Desde quando tinha essa ideia de transformar a música "Olhos nos Olhos" em filme?
Sempre tive muita vontade de fazer um filme que fosse uma história de amor, e só isso. Contar histórias de amor sempre foi uma grande vocação do cinema. Comecei a imaginar como seria filmar uma história de amor a partir de uma canção de amor, de abandono, onde uma música própria do nosso cancioneiro romântico pudesse ser o ponto de partida narrativo, o ponto de partida de tom. E "Olhos nos Olhos" é um clássico, uma daquelas músicas que a gente fica ouvindo, repetidas vezes, depois que se leva um fora.

Crédito: Alexandre Ermel Karim Aïnouz diz que preferiu não conversar com Chico Buarque durante a preparação do roteiro, para ficar livre para criar
Karim Aïnouz diz que preferiu não conversar com Chico Buarque durante a preparação do roteiro, para ficar livre para criar

Teve algum detalhe que foi muito difícil de escolher? A profissão da moça, algo assim.
As coisas foram se encaixando. Acho que quando a gente tem uma clareza conceitual sobre o que a gente quer falar, expressar, as coisas vão tomando corpo. O nome foi a primeira coisa, Violeta. Como se chamava a mulher que escreveu uma carta de amor que é a canção. Deveria ser uma mulher machucada, roxa, mas uma mulher forte, violenta. A profissão, sempre imaginei que era um personagem que tratava dos outros, que curava a dor dos outros [ela é dentista] e que, em um determinado momento, tem que se reerguer de um trauma quase físico. A idade, imaginei uma mulher de 40 e poucos anos, com um filho, com um marido, com uma vida estável, classe média, e que, de uma hora pra outra, tudo sai do lugar. E assim foi, aos poucos, que as respostas a perguntas como "qual deveria ser sua profissão" foram se respondendo espontaneamente, de maneira muito evidente.

O filme saiu com a emoção que você tinha imaginado?
O filme deveria ser antes de qualquer coisa a tradução de um trauma amoroso, quase um filme de terror. Muitas vezes quando vivemos uma experiência traumática, difícil, inesperada, dizemos: "foi como estar dentro de um filme de horror." E o filme é isso, o filme tenta traduzir a sensação de alguém que acabou de ser abandonado. E todo ele é tecido a partir daí. O que ela vai fazer logo depois que descobre que o marido foi embora? Ela mesma não sabe, bem como o espectador. Ela vai se jogar de um precipício ou ela vai sair dançando até o corpo se cansar, até ela flutuar e virar música? Ninguém sabe, e o filme é construído assim, você não sabe o que a protagonista vai fazer a cada cena, assim como ela também não sabe. O filme registra o percurso da protagonista logo depois que ela descobre que levou um pé na bunda --uma experiência pela qual todos nós, adultos, já passamos um dia. E nesse sentido ele é uma surpresa atrás da outra.

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