Com dificuldade para obter recursos financeiros, o Festival do Rio teve que ser adiado. Antes previsto para o período de 7 a 17 de novembro, o evento acontecerá agora de 9 a 19 de dezembro. A tendência é que tenha programação mais modesta neste ano. Mas por que falar do evento carioca num texto do Guia sobre a Mostra Internacional de São Paulo?
É o efeito gangorra. Devido às dificuldades do Festival do Rio, que sempre dedicou grande atenção ao cinema brasileiro, é natural que muitos dos principais diretores do país busquem o evento paulistano para apresentar seus novos filmes.
Se a quantidade de produções nacionais na Mostra de SP (65 filmes) pouco variou do ano passado para este, a qualidade da safra de 2019 é superior. E não deixa de ser uma ironia que dois dos melhores filmes desse pacote tenham presença marcante da cidade do Rio.
Um deles é “A Vida Invisível”, vencedor da mostra Um Certo Olhar, no último Festival de Cannes, e produção escolhida para representar o Brasil no Oscar 2020.
O filme de Karim Aïnouz retrata as ambições e os receios de duas jovens irmãs no Rio dos anos 1950. Era àquela altura a cidade do país que melhor simbolizava uma promessa de felicidade.
“Breve Miragem de Sol”, de Eryk Rocha, é o Rio de 2019, sem as ilusões do passado. Desempregado e recém-divorciado, Paulo (Fabrício Boliveira) passa a trabalhar como taxista durante a madrugada. Busca algum alento afetivo numa rotina angustiante.
Em contraste com “A Vida Invisível”, um melodrama de muitas cores e sentidos, “Breve Miragem” adota um vertente ultrarrealista, marcada por tons mais sombrios.
Uma atmosfera soturna também domina “O Juízo”. No filme de Andrucha Waddington, no entanto, a cidade sai de cena. Os mistérios ganham densidade quando um casal e seu filho adolescente se mudam para um casarão de uma fazenda de passado escravocrata.
Não se deve menosprezar a beleza de um painel amplo do cinema brasileiro contemporâneo— com a crise da Ancine, será assim no ano que vem?
Surgem registros muito diferentes entre si, de “O Juízo”, um suspense, a “Pacarrete”, que transita da comédia ao drama. Ambos são bem-sucedidos naquilo que propõem.
Primeiro filme dirigido por Allan Deberton, “Pacarrete” acompanha as peripécias de uma professora aposentada de dança. Ela teima em apresentar um balé numa data comemorativa de uma pequena cidade cearense.
Marcélia Cartaxo está brilhante na pele da personagem que dá título ao filme. Esta é, aliás, uma edição da Mostra de SP com interpretações femininas notáveis, casos de Fernanda Montenegro (“A Vida Invisível” e “O Juízo”) e Regina Casé (“Três Verões”).
Colaborou Anna Satie
Principais destaques
A Vida Invisível
Brasil, 2019. Direção: Karim Aïnouz. Com: Fernanda Montenegro, Carol Duarte e Gregório Duvivier. 139 min. 16 anos.
Muito se tem falado da presença de Fernanda Montenegro neste filme de Karim Aïnouz. É, de fato, uma participação sublime, mas o melodrama reúne outras tantas qualidades, como a ambientação do Rio nos anos 1950, o uso requintado das cores, a sensualidade que escapa em gestos e olhares num universo de suposto pudor.
“A Vida Invisível” é um dos grandes filmes desta Mostra de São Paulo.
Dia 18, às 20h30 (Theatro Municipal).
Breve Miragem de Sol
Brasil/França/Argentina, 2019. Direção: Eryk Rocha. Com: Fabrício Boliveira, Bárbara Colen e Cadu N. Jay. 95 min. Livre.
Eryk Rocha, filho de Glauber, tem se notabilizado pelos documentários, como “Rocha que Voa” (2002) e “Cinema Novo” (2016). “Breve Miragem de Sol” é o seu primeiro bom momento na ficção. Ao acompanhar um taxista (Fabrício Boliveira) que trabalha de madrugada no Rio, Eryk constrói um narrativa de permanente tensão, reforçada por uma fotografia arrojada e um som perturbador.
Dias 18, às 19h (Espaço Itaú - Frei Caneca 2); 19, às 14h (Espaço Itaú - Frei Caneca 4); e 24, às 16h20 (Cinearte 2).
Pacarrete
Brasil, 2019. Direção: Allan Deberton. Com: Marcélia Cartaxo, Zezita Matos e João Miguel. 97 min. 10 anos
Belíssima estreia em longa-metragem do diretor cearense Allan Deberton, “Pacarrete” se consagrou no último Festival de Gramado, no qual ganhou oito prêmios. O filme não teria tanto vigor e graça se não fosse Marcélia Cartaxo. Ela interpreta uma professora aposentada de dança que cultiva hábitos incomuns. É provavelmente o melhor trabalho de Cartaxo no cinema desde “A Hora da Estrela” (1985), que lhe rendeu o Urso de Prata.
Dias 24, às 21h30 (Cinearte 1); 25, às 15h30 (Espaço Itaú - Frei Caneca 3); e 28, às 15h45 (Cinearte 2).
Abe
EUA/Brasil, 2018. Direção: Fernando Grostein Andrade. Com: Noah Schnapp, Seu Jorge e Dagmara Dominczyk. 85 min. 12 anos.
Em seu segundo longa de ficção, Fernando Grostein Andrade trata de forma despretensiosa e divertida o cotidiano do garoto Abe (Noah Schnapp), que precisa conviver com dois ramos da família, o judaico e o muçulmano, aparentemente inconciliáveis.
Um dos trunfos de “Abe” está na inventividade do diretor para ilustrar a ligação do personagem com as redes sociais —o garoto adora cozinhar e registrar sua proezas no Instagram.
Dias 19, às 16h (Theatro Municipal); 20, às 20h (Cinesesc); e 27, às 18h30 (Cinearte 1).
O Juízo
Brasil, 2019. Direção: Andrucha Waddington. Com: Fernanda Montenegro, Lima Duarte e Criolo. 90 min. 16 anos.
Não seria difícil deixar o filme rolar ladeira abaixo. Em mãos inábeis, um suspense com tons sobrenaturais, como é “O Juízo”, poderia se tornar uma comédia involuntária. Não é o que acontece. Cineasta desde a década de 1990, Andrucha Waddington faz o seu melhor filme. Além de um roteiro engenhoso, assinado por Fernanda Torres, a produção une exuberância visual e ótimas interpretações.
Dias 24, às 21h50 (Espaço Itaú de Cinema - Augusta 1); 25, às 15h40 (Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca 5); e 27, às 14h30 (Cinearte 1).
Três Verões
Brasil/França, 2018. Direção: Sandra Kogut. Com: Regina Casé, Otavio Müller e Gisele Fróes. 94 min. 14 anos.
Diretora de bons filmes, como “Campo Grande” (2015), Sandra Kogut resolveu comentar, sob chave ficcional, um caso de corrupção em tempos de Lava Jato. Mas ela não faz isso enfocando quem cometeu o crime ou quem está incumbido de punir o criminoso. Kogut expõe essa ruína pelos olhos da caseira Madá (Regina Casé). Seu maior mérito é extrair um humor sutil de uma situação de descompasso ético e social.
Dias 19, às 21h (Theatro Municipal de São Paulo); 25, às 15h40 (Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca 4); e 28, às 15h10 (Petra Belas Artes 1).
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