O ano de 1972 é particular para o país: ao mesmo tempo doloroso e estimulante, feito de crescimento em ritmo de "milagre" e tortura contra os resistentes à ditadura, de cineastas exilados e obras de arte proibidas, mas também de O Pasquim tolerado.
O ano também é especial para o cinema, como deixa claro a mostra "1972 – 50 Anos Depois". No Brasil, a ditadura militar era extremamente popular e, se perseguia não poucos artistas, também buscava proteger, dentro de certos limites, o cinema brasileiro. Entre outras, incentivava a realização de filmes baseados em grandes obras da literatura nacional.
Assim, este é o ano de obras-primas como "Toda Nudez Será Castigada", de Arnaldo Jabor, a partir da peça de Nelson Rodrigues, de "São Bernardo", de Leon Hirszman, baseado em Graciliano Ramos, "Os Inconfidentes", de Joaquim Pedro de Andrade, baseado, entre outros, nos Autos da Devassa.
Os três filmes participam de "1972 - 50 Anos Depois", retrospectiva organizada pela Cinemateca Brasileira, onde acontecerão as sessões dos filmes brasileiros daquele ano escolhidos pelo curador Paulo Sacramento, desta quinta (10) até o dia 20, com ingressos grátis. Mas nem só de adaptações literárias viveu aquele ano. O produtor Oswaldo Massaini celebrou os 150 anos da nação com "Independência ou Morte", de Carlos Coimbra, enquanto Mazzaropi lançava "O Grande Xerife", com direção de Pio Zamuner.
Walter Hugo Khouri exercitava-se no gênero erótico-existencial com o belo "As Deusas", enquanto Glauber Rocha transitava para o udigrudi com "Câncer", e Luís Rosenberg se firmava como oposicionista radical do regime com "Imagens".
A mostra busca equilibrar-se entre as várias tendências que se manifestaram naquele momento. "A Faca e o Rio", de George Sluizer, é um dos muitos filmes proibidos daquele momento. Ao mesmo tempo, Carlos Diegues não se deixava levar pelo pessimismo diante do regime e lançava "Quando o Carnaval Chegar", musical puxado pelo prestigio de Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia.
Já Luís Sérgio Person trocava os temas sérios pela leveza de "Cassy Jones – O Magnífico Sedutor", comédia que lançava Sandra Brea como estrela, ao lado de Paulo José, notável personagem-título desse que seria o último trabalho de Person para cinema.
Infinitamente mais modesto, seu discípulo Carlos Reichenbach fazia com "Corrida em Busca do Amor" seu primeiro longa, mistura de musical e comédia, com um elenco de cantores secundários da Jovem Guarda (Dick Danello, Vick Barone), atores pouco conhecidos (com exceção de David Cardoso) e uma produção miserável. Um filme de rali em que faltava dinheiro até para a gasolina dos veículos, o que ajuda a entender seus muitos altos e baixos, achados e perdidos.
A ditadura que forçou cineastas como Glauber, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane a deixarem o país tampouco poupou José Mojica Marins. O criador de Zé do Caixão e do terror brasileiro foi um alvo preferencial da ditadura, o que não o impediu de fazer "Quando os Deuses Adormecem". Do lado amador, Aron Feldman criava "O Mundo de Anônimo Junior", produzido em 16 mm.
Em poucas palavras, trata-se de amostragem diversificada de um momento paradoxal, em que o cinema se afirmava como atividade, com proteção do Estado (as cotas de tela já haviam sido criadas) e ao mesmo tempo turbulência e perseguições políticas.
Por sua vez, a seção estrangeira da mostra começa no dia 28 deste mês e segue até 6 de dezembro no CineSesc. Diferentemente da Cinemateca, tem ingressos pagos, mas parte da programação fica disponível gratuitamente no streaming do Sesc.
Ali se verá que 1972 não foi um ano menos conturbado fora daqui. Afinal, os Estados Unidos lutavam ingloriamente no Vietnã, e "O Poderoso Chefão", de Francis Ford Coppola, marcava o surgimento em Hollywood de uma nova geração pouco inclinada a passar batida pelas mazelas da vida naquele país.
No mesmo momento, Bob Fosse fazia o filme musical renascer com "Cabaret", revisita à Alemanha no momento de ascensão do nazismo. Por falar em Alemanha, naquele momento seu cinema renascia, como testemunham "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", de R.W. Fassbinder, e "O Medo do Goleiro Diante do Pênalti", de Wim Wenders.
Da então URSS emergia o misterioso "Solaris", que a publicidade consagrava como "o 2001 russo", e era, antes de tudo, a revelação para o mundo de Andrei Tarkovski. Não menos enigmático, Luis Buñuel trazia toda sua imaginação com "O Discreto Charme da Burguesia", enquanto na Itália a tradição do cinema político permanecia viva, como deixava claro "Mimi, o Metalúrgico", de Lina Wertmuller, com Giancarlo Giannini.
Rever o mundo através do cinema, em especial o Brasil, com todos os seus paradoxos, 50 anos depois, será certamente um exercício estimulante e com muita frequência agradável para quem quiser entendê-lo tal como hoje se apresenta a nós.
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