É tão raro ver um filme paraguaio ganhar o mundo que, quando algum consegue ir a um grande festival atiça a curiosidade já de antemão. Assim foi com “As Herdeiras”, que chegou ao último Festival de Berlim como incógnita e saiu com elogios e com os prêmios da crítica e de melhor atriz (Ana Brun).
É verdade que a seleção de Berlim 2018 não foi lá nenhum primor, mas o longa de estreia de Marcelo Martinessi merece, em parte, a aclamação. É um filme humano, delicado, sobre uma mulher que redescobre a própria individualidade após os 60 anos.
Chela vive há décadas com a namorada Chiquita em uma mansão herdada. São da elite paraguaia, mas estão atoladas em dívidas: vendem móveis e prataria para poder comer. Ainda se gostam, mas o desejo sumiu; Chela se incomoda com a simples presença da parceira. Quando esta vai presa por conta das dívidas, é ao mesmo tempo um choque e um alívio para a deprimida Chela, que vê ali uma chance de voltar a se empolgar com a vida.
O longa é introspectivo, e seu ritmo meio hipoglicêmico se adequa bem às intenções do diretor: falar de alguém que retorna a si mesma após anos de autonegligência. O filme mostra que uma adversidade pode tirar alguém do estado de hibernação.
Martinessi é um bom diretor, mas investe naquele intimismo naturalista já cansado, quase um cacoete de certo cinema atual. Nasceu no Paraguai, mas seu filme poderia ter sido feito por um diretor de qualquer outro país latino-americano, quiçá europeu. Ser uma coprodução de vários países não redime a ausência, ali, de um tratamento mais local: sente-se falta de uma visão mais marcadamente paraguaia.
Além disso, ao reiterar o aspecto existencialista, universal do tema, negligencia o que Chela tinha de mais específico —e promissor. Ela é idosa, lésbica, paraguaia; mas Martinessi só tangencia essas particularidades, em nome de seu projeto generalista. Um projeto legítimo? Sim, mas também frustrante.
Mas Ana Brun compensa as falhas. Em seu primeiro longa, ela tem uma performance invariavelmente contida, minimalista. Onde outras atrizes veriam a brecha para pavonear recursos expressivos, Brun opta pela economia. Por inexperiência ou de caso pensado, sua aposta é intrigantemente certeira.
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