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Ir ao cinema na pandemia é uma mistura de paranoia e irritação

Salas retomaram as exibições neste sábado (10) em São Paulo após autorização do governo

São Paulo

O cinema nunca foi só um lugar para assistir a um filme. Se reparar bem, qualquer sala com um projetor ligado pode logo se transformar em um lugar tenso, um caldo de irritações, onde desconhecidos trancados no escuro testam durante horas os limites da nossa vida em sociedade.

Já era assim muito antes da pandemia, quando tudo estava aberto e as únicas preocupações eram saber se o novo filme do Woody Allen ainda tinha ingressos disponíveis ou se o documentário armênio mudo, tão elogiado pelos críticos, realmente era tudo isso. Mesmo naquele mundo já distante, no qual “comorbidades” e “perdigotos” eram só palavras esquisitas, o fim das democracias já se escondia entre as poltronas dos cinemas.

A irritação —ou o estopim de uma revolução— podia começar com aquele casal que comenta todas as cenas e explica um para o outro se tal personagem é o vilão ou o mocinho. Ou com o rapaz que segura uma piscina de pipoca, come tudo de boca aberta e faz barulho ao sugar a Coca-Cola de três litros com canudinho por puro sadismo. Isso sem falar no cinéfilo com síndrome das pernas inquietas que não para de chutar o encosto da sua poltrona. E também na executiva ocupada que é incapaz de desligar o celular durante a sessão e inunda a escuridão do cinema com uma luz azulada de boate.

Esses casos podem ser infinitos dentro de uma sala. Pelo menos era o que pensávamos —até a pandemia surgir e dobrar a meta.

Com abertura dos cinemas neste sábado (10) em São Paulo, após mais de seis meses com projetores desligados por causa do coronavírus, decidi assistir a “O Oficial e o Espião”, último filme de Roman Polanski, para entender como é encarar uma sala nesta retomada. O local escolhido foi o Espaço Itaú do shopping Frei Caneca, opção estratégica por ser o cinema mais próximo de casa —sim, é claro que o menor tempo de deslocamento não muda em nada o fato de ficar 132 minutos somados ao tempo dos trailers dentro de um local fechado com desconhecidos em plena pandemia, mas cada cérebro tem suas maneiras de ser enganado.

Logo ao mostrar o ingresso para o funcionário e chegar ao assento escolhido, rodeado de cadeiras que não podem ser usadas para manter o distanciamento social entre os espectadores, percebemos que o contexto da quarentena e os protocolos de segurança determinados pela prefeitura e pelo governo estadual só fizeram com que as irritações normais de uma sala de cinema ganhassem a companhia da paranoia.

As questões são muitas. Será que passei álcool em gel suficiente nas mãos? As poltronas foram realmente desinfectadas desde a última sessão? Quem usou este assento antes de mim estava respeitando todas as normas de segurança da pandemia? Aquele casal que mudou de lugar depois que as luzes foram apagadas está a um metro e meio de distância dos outros? A mulher que tossiu está usando máscara? Foi uma tosse normal? Tosse é um dos sintomas da Covid-19? O homem com a pipoca está com a máscara tampando nariz e boca? Esse sistema de ar-condicionado é mesmo seguro ou deixa todo mundo mergulhado em uma sopa gasosa de infecção?

Se pensar que as novas preocupações não eliminam os estresses antigos, logo percebemos que a caixa de Pandora foi aberta no lusco-fusco. Qualquer aluno de oitava série pode tentar calcular essa análise combinatória recheada de situações que se multiplicam em progressões geométricas.

Aquele casal que pergunta se fulano é mocinho ou bandido está sem máscara e esqueceu de passar álcool em gel? O rapaz que toma a Coca-Cola de três litros com canudinho deixou a máscara no queixo e lança gotículas de saliva infectadas que estão sendo espalhadas pelo sistema de ar-condicionado? O cinéfilo com síndrome das pernas inquietas chuta uma poltrona que não foi devidamente desinfectada? A executiva que ilumina a sala com a luz do celular mudou de poltrona e está a menos de um metro e meio das outras pessoas? Essa tosse é aquele pigarro normal que sempre existiu em qualquer sessão ou devemos todos evacuar imediatamente a sala?

Enquanto ainda tentava chegar a todos os cruzamentos e cenários possíveis, percebi que o filme do Polanski já tinha passado da metade. A parte boa é que “O Oficial e o Espião” carrega o espectador pela mão e não cria labirintos narrativos, apesar dos inúmeros flashbacks e da trama detetivesca sobre o caso real de Alfred Dreyfus, judeu acusado de traição pelo Exército francês no século 19.

Mesmo assim, talvez o cinema não seja o melhor lugar do mundo para assistir a um filme com atenção neste início de reabertura.

A segunda parte boa foi ter escolhido uma sala perto de casa.

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