Em "Marte Um", seu primeiro longa solo, Gabriel Martins exibe algumas das virtudes que seus trabalhos anteriores já apresentavam. A situação central é um bom exemplo de sua sensibilidade: um jovem pré-adolescente sonha em ser astrofísico e participar da primeira viagem de colonização de Marte, programada para 2030. O pai, no entanto, tem outras aspirações e entende que ele precisa aproveitar seu talento de futebolista para jogar num grande time.
Estamos diante de uma família da baixa classe média, presumivelmente de Contagem, em Minas Gerais, de onde vem a produtora Filmes de Plástico, hoje uma das principais do país. A família é formada por Tércia, a mãe, que se dedica a afazeres domésticos; Wellington, o pai, porteiro de um condomínio; Eunice, a irmã do rapaz, que se mostra razoavelmente feminista; e, por fim, Deivinho, o filho que sonha com outros mundos.
À premissa é acrescentada a constatação (discreta, felizmente) de que o país é o atual, nas mãos de dirigentes conservadores. O que de melhor poderia pensar o menino senão em viver em outro mundo? Eunice é mais velha e mais independente. Não faz discurso feminista, apenas pergunta à mãe por que ela não ensina Deivinho a fazer tarefas domésticas. Pouco depois, começa a namorar outra moça, Joana.
Pode-se pensar nos 1.001 filmes, novelas e seriados que exploram situações semelhantes, mas veremos que Martins conduz o feminismo da jovem com tato e inteligência.
Em princípio, temos assim uma situação política que limita os sonhos de pessoas razoavelmente pobres e, ao mesmo tempo, um conflito de sensibilidades e costumes entre a geração dos pais e a dos filhos —também tratado com discrição, como parte da vida, não como dramalhão estéril.
Se, apesar de todas essas virtudes, é difícil aderir de todo ao filme, isso se explica, ao menos em parte, ao fato de ser esse o primeiro longa do diretor. O primeiro e mais evidente item diz respeito ao velho preceito segundo o qual diretores não deveriam montar o próprio filme, pois há a perigosa tendência a se apaixonar por cenas ou planos que não fazem bem à narrativa.
Se "Marte Um", que foi premiado no Festival de Gramado, estivesse nas mãos de montadoras como Cristina Amaral ou Idê Lacreta, por exemplo, não acredito que tivessem sobrevivido as sequências entre a mãe e um anão gay. Não são ruins, mas simplesmente não servem à história.
Há diversos momentos como esse, a sugerir que, quando se afasta do registro narrativo, o filme tende à dispersão. Esse caráter se acentua em certos pontos.
É o caso da primeira visita da namorada de Eunice aos futuros sogros, coisa em si embaraçosa. Prepara-se um clima de incompreensão ao romance entre as duas moças, mas isso simplesmente é soterrado pela rivalidade entre Cruzeiro, time do pai fanático, e Atlético-MG, clube para o qual a nova namorada torce.
Para onde Martins queria levar a sequência? Isso não fica claro. Talvez a comemoração de um gol, ali, na cara do sogro, seja o sinal da vitória do amor entre as jovens sobre a resistência paterna. Ainda assim, a solução é pouco convincente.
Por outro lado, "Marte Um" tem a qualidade de reforçar a tendência do grupo de Contagem a fazer um cinema que mostre a vida de pessoas negras sem fazer disso ativismo. O assunto está lá. Basta ver a maneira como o pai é tratado quando, a horas tantas, perde o emprego —o que escancara como essa população e as classes sociais mais baixas são tratadas no Brasil.
O filme traz à cena uma sensibilidade cinematográfica certa, mas ainda não inteiramente consolidada. Martins fica num meio caminho, entre a plena realização que se anuncia por vezes e uma certa frustração diante de um projeto que promete mais do que cumpre.
Comentários
Ver todos os comentários