Uma imagem me atormenta neste ano cruel de isolamento. A colagem de Richard Hamilton, embrião da arte pop, perguntava já no nome o que fazia as casas do momento serem tão diferentes, atraentes.
Era o fim da década de 1950, e sua resposta visual imaginava uma ampla sala de estar. Nela, um halterofilista segura um pirulito gigante em frente à sunga sumária, e sua mulher nua exibe o seio como troféu diante de uma garota na TV. Na mesinha de centro, a embalagem de presunto parece ser o jantar. Sobre os tapetes felpudos, repousam um toca-fitas e o moderno aspirador de pó.
Hamilton desancava o sonho de conforto burguês imperturbável naquele distante pós-Guerra. Décadas depois, no maremoto das ondas da pandemia, a disparada de encomendas de aspiradores-robôs, airfryers, bicicletas ergométricas, smart-qualquer-coisa no varejo online só faz pensar que voltamos àquele mundo artificial, plástico e fantástico, com a diferença que não podemos dar uma volta por aí para variar o cenário da nossa angústia.
No início do confinamento, um amigo arquiteto postava no Instagram lindos apartamentos que desenhou pela cidade e alertava que agora a decoração de interiores é tudo o que temos —premonitório quanto a estridência de Hamilton.
Tanto é que o streaming e as redes sociais captaram o zeitgeist e parecem estar cada vez mais cheios de visões de interiores inatingíveis.
São casas estonteantes, suas piscinas de borda infinita brilhando ao sol, janelas que descortinam horizontes lisérgicos, urbanos ou rurais, móveis do seu designer modernista do coração lânguidos na brisa do fim da tarde, chãos de tacos reluzentes ou ladrilhos hidráulicos. Tudo, do japonismo escandinavo ao rústico-chic provençal, está ao alcance dos dedos na tela —é o que se chama agora de pornografia imobiliária.
E pornografia vicia. Se o impulso para o consumo de toda droga depende de um gatilho emocional, não há gatilho maior e mais potente que estar preso entre quatro paredes por um tempo que parece se estender sem pressa ao infinito. Daí o sonho da casa ideal, diferente e atraente, se tornar o ópio do confinado.
Nos últimos meses, encaro o novo vício como junkie experiente. É preciso saber a hora de estimulantes e calmantes. Estimulantes —realities de mansões hiperbólicas, como as de Sunset - Milha de Ouro à beira dos cintilantes balneários californianos ou as de Grand Designs, nos redutos endinheirados de Londres. Calmantes —aquelas casas mais de gente como a gente em canais do YouTube como Histórias de Casa ou Never Too Small.
O que torna as casas do momento tão diferentes e tão atraentes é que, para nós afortunados distantes das linhas de frente e bem servidos no home office, tudo chega pela janela elástica, às vezes tóxica, do streaming, das redes sociais e do delivery de vinhos. Mas também são sonhos que nos protegem da peste que grassa lá fora e ainda mata demais.
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