Irmão de 'Aquarius', 'Elle' é radical

Crítica

O mundo de Michèle Leblanc é violento, como podemos testemunhar desde a primeira cena. Embora a câmera esteja a maior parte do tempo sobre o olhar impassível de um gato, no cômodo ao lado ela está sendo estuprada.

Logo em seguida não veremos Michèle na polícia. Uma imagem de monstros irrompe na tela. É quando sabemos que essa mulher, longe de ser uma vítima, é uma poderosa industrial do ramo de games eletrônicos.

Não é tudo. Nem de longe. Logo nos daremos conta da completa amoralidade da mulher. Essa libertina pode usar palavras duras quando censura o filho por sua mansidão diante da noiva, ou a mãe por namorar um gigolô décadas mais novo do que ela.

Ao mesmo tempo, Michèle pode usar um binóculo para observar o vizinho bonitão que mora na casa em frente. Observar e se masturbar.

Isabelle Huppert em 'Elle'
Isabelle Huppert em 'Elle' - Divulgação


A moralidade é tão ausente do seu mundo quanto a violência é presente desde a infância, quando testemunhou e de certo modo foi envolvida pelo massacre de dezenas de pessoas praticado por seu pai.

É esse o território de "Elle", o mais recente e notável filme de Paul Verhoeven. Ninguém esquecerá de outros de seus filmes em que sexualidade e anarquia davam o tom, de "Showgirls" a "Instinto Selvagem" (ah, aquela histórica cruzada de pernas de Sharon Stone). Este é o mais radical.

CLARA X MICHÈLE

Como não convém revelar mais sobre a intriga, podemos nos dedicar um pouco à construção. De certa forma estamos diante de um filme irmão do brasileiro "Aquarius", que traz no centro, igualmente, uma personagem feminina forte, de gestos inesperados e sensual.

Só que a nossa Clara é construída de fora para dentro. É uma jornalista e, como tal, reage ao mundo. Se a imobiliária quer seu apartamento, nega. Se uma cena sensual a inspira, procura um companheiro. Se os filhos querem que venda o apartamento, insurge-se. Clara constrói-se como uma aranha em que cada uma das pernas ajuda a tecer o corpo, o centro.

Michèle, ao contrário, é construída de dentro para fora: cada um de seus atos repercute sobre o mundo. É como se seus gestos se irradiassem sobre as pessoas próximas com a mesma brutalidade que seus personagens de game desenvolvem.

Claro, é possível que esteja bem próxima em inúmeros aspectos da monstruosidade do pai --a quem renega com todas as forças, aliás. O essencial, no entanto, é que a esse mundo de violência Michèle não reage: ela age, e de certo modo o referenda.

Ainda na comparação com a aranha, é como se o corpo, aqui, se irradiasse, lançando cada uma das várias pernas sobre o mundo e o transformando.

A formidável teia que Verhoeven vai tramando em torno dessa mulher, constituída de paradoxos e desejos, desfaçatez e perversão constitui um dos filmes mais apaixonantes, talvez o mais, dos últimos tempos.

Nisso, é preciso dizer, Isabelle Huppert tem um papel decisivo, assim como Sonia Braga em "Aquarius". Só que mais.

ELLE
DIREÇÃO Paul Verhoeven
ELENCO Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny
PRODUÇÃO França/Alemanha, 2016, 18 anos
MOSTRA 21/10, 21h40 (Cinearte 1), 23/10, 21h30 (Cinemark Cidade São Paulo), 25/10, 15h (Cinesesc), 27/10, 16h10 (Itaú Augusta 1)
AVALIAÇÃO ótimo

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