O chão craquelado do sertão guarda também as fissuras do Brasil e de suas feridas ancestrais. "Deserto", estreia na direção de cinema do curitibano Guilherme Weber, faz de um vilarejo na Paraíba um microcosmo do país.
Inspirado pelo universo de realismo fantástico de "Santa Maria do Circo", romance do mexicano David Toscana, o diretor cria uma alegoria da formação do Brasil, contada pela trajetória de um grupo de artistas mambembes.
Liderada por um idealista quixotesco (Lima Duarte), a trupe viaja pelo sertão encenando espetáculos. Certo dia chega a um vilarejo fantasma com uma fonte de água limpa —item raro naquele mundo de secura. Sem plateia para a performance e cansado da vida errante, o grupo decide fundar ali uma comunidade.
Sorteiam papéis para cada um desempenhar: médico, padre, cozinheira, negro (leia-se escravo) e prostituta.
Assumem suas funções díspares, e a convivência fraterna de outrora dá lugar a valores conservadores.
"O filme discute como uma sociedade pode ir por um caminho tortuoso, se fechando e entrando num lugar muito medieval, retrógrado, de comportamento", diz o diretor.
Seja pela moral caturra, como açoitar o "negro" (na realidade um homem branco e idoso, interpretado por Fernando Teixeira) por roubar uma banana, seja pelo estado por vezes animalesco em que se encontram. Logo que chega à cidade, um dos artistas (Márcio Rosário) se apossa de uma privada de louça. "A gente tem que cagar numa dessas de vez em quando para lembrar que não é bicho", diz o personagem.
Na fala dos atores, de tom épico, Weber busca a diversidade do país. "Tem gente de várias regiões do Brasil. E eu pedia para eles carregarem os sotaques, que formam uma paisagem sonora e uma representação nacional."
PALCO
Mais conhecido por seu trabalho no teatro —fundou, ao lado de Felipe Hirsch, a Sutil Companhia em 1993—, Weber recorreu ao realismo cenográfico do cinema para realçar o lado fabular da trama.
Retrata em tons de ocre o clima árido e o céu amplo de Picotes, vilarejo no sertão paraibano onde gravou o longa —e que descobriu numa rápida passagem de "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005), filme de Marcelo Gomes.
Encontrou ali uma arquitetura que se liga a um imaginário latino-americano, mas que também remete a filmes western, com uma rua principal, a "arena de embate" desses personagens.
O diretor não emula a estética do teatro, mas fala do ofício por meio dos personagens, eles mesmos artistas, que de certa forma interpolam vida e arte, citando entre os afazeres e questionamentos cotidianos trechos de "Macbeth", Sófocles, Brecht.
"Levantamos o tempo todo a questão se eles estão realmente vivendo essa história ou se estão encenando."
Também homenageia o ofício de ator, "como os bufões que oxigenam a sociedade".
Confira toda a programação no site do "Guia" da Mostra.
DESERTO
DIREÇÃO Guilherme Weber
ELENCO Lima Duarte, Cida Moreira, Everaldo Ponte, Magali Biff
PRODUÇÃO Brasil, 2016, 14 anos
MOSTRA qua. (26), às 19h15, no Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca; qui. (27), às 20h10, no MIS - Museu da Imagem e do Som; seg. (31), às 14h, na Cinesala
Comentários
Ver todos os comentários