Os belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne passaram a integrar a lista de grandes nomes do cinema contemporâneo desde o momento em que se identificou a coerência entre temas e forma em seus filmes, uma visão ética manifestada por meio de uma estética própria.
De "A Promessa" (1996) a "Dois Dias, Uma Noite" (2014), os irmãos diretores puseram em cena o atual estado de mal-estar social com um método que visa intensificar a percepção dos corpos. O efeito primordial é amplificar a gravidade dos temas elevando o grau de realismo, afirmando a brutalidade dessas histórias.
"A Garota Desconhecida", décimo longa de ficção da dupla, reitera essa constância com um drama protagonizado por uma jovem médica, profissão que tem nos corpos um objeto central.
Na primeira cena, vemos Jenny Davin (a excepcional Adèle Haenel) auscultar um paciente, concentrar-se num método próprio da profissão.
Em seu trabalho, atender às pessoas significa, sobretudo, dar atenção. Na situação seguinte, Jenny salva um garoto com convulsão e critica a reação confusa do estagiário, alertando-o que "é preciso dominar suas emoções para ser um bom médico". Ressentido com a bronca, o estudante alega que foi estudar medicina movido pelo ideal de cuidar das pessoas.
Essa relação com os outros é posta em crise quando Jenny não atende a um chamado depois do expediente. A decisão tem consequências mais amplas quando se descobre que a garota que tocou à porta foi encontrada morta do outro lado da rua e será enterrada como indigente.
O movimento obsessivo da protagonista a partir daí não visa identificar e punir um crime. Trata-se mais de descobrir o nome da garota e devolver a um corpo sua história.
A motivação da personagem não se resume à culpa por não ter atendido a campainha e, talvez, salvado uma vida. O que vem daí traz à tona o sentido de responsabilidade, o sentimento de que atos aproximam uns e outros.
Assim, os Dardenne interpretam com astúcia o conceito de rede social, de como se conectar implica mais do que curtir ou obter vantagens.
A investigação de Jenny equivale ao que os médicos chamam de anamnese, a pesquisa do histórico do paciente para um diagnóstico. Por meio dela, o filme identifica múltiplas conexões e revela que todas ocultam sentidos.
O trabalho médico envolve também auscultar o corpo em busca de sintomas, medir o pulso para identificar irregularidades, tomar a temperatura para averiguar distúrbios.
A combinação desses procedimentos cria um efeito de suspense que conduz a trama, como se Hitchcock tivesse dirigido um episódio de "House" sobre uma patologia mascarada no tecido social.
Não por acaso, a garota morta era também negra, de origem africana e vivia clandestina, ou seja, sua história envolve mais que a solução de um inquérito policial, revela valores, políticas e atitudes individuais e coletivas.
Esperar, portanto, que os Dardenne deem menos atenção à garota desconhecida é o mesmo que querer que reduzam a pobreza tirando os mendigos da nossa frente.
A GAROTA DESCONHECIDA
(La fille inconnue)
DIREÇÃO Jean-Pierre e Luc Dardenne
ELENCO Adèle Haenel, Olivier Bonnaud, Jérémie Renier
PRODUÇÃO França/Bélgica, 2016, 14 anos
QUANDO ter. (25), às 16h, no Cinearte; dom. (30), às 19h10, no Caixa Belas Artes; seg. (31), às 13h30, no Espaço Itaú "" Frei Caneca
AVALIAÇÃO ótimo
Confira toda a programação no site do "Guia" da Mostra.
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