No último dia 14/2, um vídeo incrível viralizou na internet. Nele, o diretor Steven Spielberg, em uma conversa informal com o ator Tom Cruise, que de vez em quando é interrompida por Jon Stewart, e que estava sendo filmada e fotografada por várias pessoas, diz que o ator e produtor de "Top Gun: Maverick" "salvou a pele de Hollywood" (em inglês, "saved the ass’, salvou a bunda, que não faz sentido traduzida).
Tom Cruise olha para o chão e chacoalha a cabeça, como se dissesse "não, não, imagina", com sincera humildade. É um grande ator. Em seguida, Spielberg se aproxima mais dele, como se fosse contar um segredo, e completa o pensamento: "sério, ‘Maverick’ pode ter salvado toda a indústria cinematográfica".
Os dois participavam de um almoço oferecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, a organização que concede o prêmio mais importante do cinema, o Oscar, para os indicados do ano passado. Os vencedores foram anunciados no último domingo, dia 12/3, e "Maverick" ganhou apenas uma das seis estatuetas a que concorria, de melhor som. "Os Fabelmans", filme dirigido por Spielberg e que concorria a sete Oscars saiu nem nenhum.
O grande vencedor deste ano não tinha nem um cineasta nem uma estrela tão brilhante quanto os dois nomes citados acima, os que tiveram a conversa gravada e assistida milhões de vezes. "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", que concorria em 11 categorias, venceu em sete —melhor filme, roteiro original, direção, atriz, atriz coadjuvante, ator coadjuvante e melhor edição.
Mas o que estava por trás da curiosa —e muito exagerada— afirmação de Spielberg era que o filme estrelado por Tom Cruise, que, por insistência do ator e produtor foi lançado somente nos cinemas e faturou quase US$ 2 bilhões de bilheteria, teria trazido, sozinho, a esperança de que o público pode voltar às salas de exibição, afinal de contas.
"Top Gun: Maverick" está disponível para ser visto na TV ou em qualquer tela, mas só chegou a elas três longos meses depois de entrar em cartaz. E muita gente não quis esperar tanto tempo assim para assistir à continuação do blockbuster de 1986.
Mesmo depois de dois anos de pandemia e do quase domínio absoluto dos canais de streaming, que fizeram com que previsões apocalípticas apontassem o fim iminente da era das salas de cinema, Tom Cruise, tal qual o seu personagem em "Top Gun: Maverick", teria conseguido, sozinho, salvar o mundo.
Não é bem assim. E o grande vencedor do Oscar deste ano é a prova disso. Sem nenhum super-herói, sem ser continuação de um filme de sucesso, sem uma grande estrela no papel principal, com um roteiro impossível de ser resumido em uma frase e um título extralongo, "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" optou pela mesma estratégia de Tom Cruise.
O filme foi lançado somente nos cinemas e o público foi ver, levado pelo boca a boca que uma história tão original, contada de uma maneira tão inusitada, provocou. Além, claro, das ótimas críticas que recebeu no mundo inteiro.
O filme está longe de ser uma unanimidade, tem gente que acha insuportável, mas sua trajetória provou um ponto muito importante: histórias estranhas, experimentações cinematográficas e a coragem de correr riscos ainda valem muito a pena na indústria de cinema. O destino para esse tipo de longa-metragem não está traçado e não é uma caixinha lá no final de uma longa lista de filmes mais famosos em um canal de streaming.
Ir ao cinema, com horário marcado, deixando todas as preocupações do lado de fora da sala de exibição para se entregar a uma história não é o programa favorito de tanta gente por acaso. Tem uma mágica que acontece nas salas de cinema, uma sensação impossível de ser traduzida sem nenhuma perda para a TV da sala ou do quarto, por mais tentador que isso possa soar.
Por maior que seja sua TV plana, é quase certo que ela não tenha o tamanho de um prédio de três andares deitado. Não tem nada intrinsecamente errado em ver um filme na TV, no laptop ou no celular. Mas basta comparar a sensação de olhar para um céu estrelado com a de ver uma foto de um céu estrelado no smartfone para que fique evidente que tamanho, aqui, é documento, sim.
E mesmo os mais sociofóbicos entre nós concordam que, no escurinho de uma sala de cinema, ter gente em volta é uma grande vantagem. Um grupo rindo ao mesmo tempo funciona como um gatilho para que a gente tenha vontade de rir também, mesmo de piadas e situações que, sozinha, no sofá, não ache graça nenhuma. O mesmo com uma situação de suspense, sentir as outras pessoas de olhos grudados na tela e prendendo a respiração de nervoso faz com que a gente vire quase um só organismo.
A comunicação com amigos, namorados ou familiares com quem, em casa, a gente comenta com total liberdade as maiores superficialidades ou faz piadas politicamente incorretas tem que ser reinventada na sala de exibição. De repente, um sorrisinho de lado ganha um novo significado, uma sobrancelha levantada pode conter um milhão de explicações, um apertão no braço vira sinônimo de outra coisa completamente diferente.
E quando a história contada não precisa disputar a atenção com todos os objetos e seres vivos que coexistem nas nossas casas, quando a única coisa iluminada foi pensada por um diretor de fotografia para exaltar o ponto mais importante de cada cena, cujo som sai por um equipamento profissional na altura exata, quando tudo que você tem nas mãos é um saquinho de pipoca e uma garrafinha de água, fica, de fato, mais fácil se entregar para uma história contada em sons e imagens projetados numa tela enorme na nossa frente.
E aquela história vai ser contada naquele horário, com ou sem você. Não ter controle —nem remoto nem real— não ter acesso ao botão de pause ou a opção de voltar uma cena (tampar o olho é sempre possível, mas o medo ou o terror podem entrar pelos seus ouvidos ou, pior, pela imaginação) fazem a experiência de ver um filme no cinema a coisa mais próxima de viver uma transformação de verdade.
E quando o filme é bom, o que acontece na tela é mais bem escrito, dirigido, iluminado, encenado por gente mais interessante e com uma trilha sonora perfeita, que nunca toca na vida real.
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