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Como Messias deixou o cabo da enxada para se tornar o rei dos sebos de São Paulo

Aos 80 anos, dono da tradicional loja de usados teve que tirar férias por causa da pandemia de Covid

São Paulo

Existem endereços em São Paulo que não são só lugares, mas acabam se tornando um resumo da cidade. O número 140 da praça Doutor João Mendes é um desses.

É ali, nas costas da catedral da Sé, que funciona há 50 anos o Sebo do Messias —um dos mais conhecidos e tradicionais da capital. Entrar na loja é como conhecer a cidade pela primeira vez. Tudo parece caótico, fora de ordem, o avesso do avesso do avesso, como cantou Caetano em “Sampa”.

O desnorteio começa já após a entrada, onde livros de política se misturam a DVDs e LPs. Andando por ali, encontra-se “Mémoires de Guerre”, obra de Charles de Gaulle, em uma edição francesa de 1959 e que custa R$ 30, dividindo espaço com uma caixinha com filmes românticos, como “Ghost” (R$ 10) e “9 ½ Semanas de Amor” (R$ 18). À frente, há discos de ópera. Do outro lado, títulos de história.

Mas não são só livros, discos e filmes. Assim como São Paulo, o sebo parece ter de tudo, de mapas a quadros, de tabuleiros de xadrez a toca-fitas. Faz um ano que só não tem uma coisa: seu dono, o mineiro Messias Antonio Coelho.

“A pandemia me forçou a ficar em casa”, conta o empresário de 80 anos recém-completos, 30 deles sem tirar férias. Desde março do ano passado, ele deixou o dia a dia da loja com as filhas. “Mas, se aparece algum problema, elas me ligam e vou ao sebo”, diz o morador da Aclimação, bairro a três quilômetros da Sé.

A história de Messias, porém, tem início muito mais longe —em Guanhães, cidade próxima ao rio Doce, em Minas Gerais, onde começou a capinar a roça com a família, aos sete anos. “Fiquei no cabo de enxada até os 18, quando fui para Belo Horizonte.”

Na capital mineira, trabalhou de atendente de botequim, onde ouviu falar de São Paulo. Chegou em terras paulistanas em 1964, quando conseguiu emprego de cumim —ou ajudante de garçom— no famoso restaurante Don Fabrizio, da família Tatini.

Foi só depois que os livros entraram na vida de Messias, menos como leitura e mais como negócio. Casado desde 1967, ele foi convidado pelo sogro para começar a vender obras de porta em porta.

“Às vezes, clientes pediam um que eu não tinha, então buscava em sebos e fazia um dinheirinho por fora”, conta. Um desses clientes, morador dos Jardins, teve um infarto de repente e morreu. Conhecido da família, Messias recebeu a oferta de comprar a biblioteca dele. “Eram uns 5.000 livros. Como eu não tinha dinheiro, paguei em dez cheques.”

Sebo Messias em foto tirada nos anos 2000
Sebo Messias em foto tirada nos anos 2000 - Cleo Velleda/Folhapress

O acervo foi primeiro para a garagem do cunhado. As vendas deslancharam e novos títulos usados surgiram, o que fez com que alugasse uma salinha na praça João Mendes. Ainda atendendo de porta em porta, ele logo expandiu o depósito para as salas ao lado.

Foi no apagar das luzes de 1969 que o Sebo do Messias virou loja e passou a receber o público. “Em seguida, alugamos o segundo, o terceiro e o quarto andares”, diz. Depois vieram lojas na rua da Glória, na Brigadeiro Luís Antônio e na Quintino Bocaiuva. “Cheguei a 70 funcionários.”

Hoje somente com o ponto na região da Sé, Messias acompanha de longe a queda no movimento por causa da Covid-19. “Com as pessoas em home office, a circulação no centro despencou. Se eu não tivesse criado um site de vendas online, já teria fechado.”

Mesmo assim, o sebo segue visitado. Não é raro encontrar engravatados saídos do Fórum João Mendes Júnior, que fica ali ao lado, além de clientes com cestinhas apinhadas de DVDs e turistas flanando sem rumo pelas estantes.

Porque um dos jeitos mais divertidos de conhecer a loja é desse jeito, perdendo-se por ela sem bússola. A disposição dos livros ajuda, pois eles ficam guardados nas prateleiras por ordem alfabética de titulo —e não por sobrenome de autor, como é mais comum.

Assim, se você procura “A Lua Vem da Ásia” e “O Púcaro Búlgaro”, como este repórter, por exemplo, é preciso garimpar as edições de Campos de Carvalho nas letras L e P da seção de literatura brasileira.

Mas é como um passeio por São Paulo, no qual uma saída para jantar em um restaurante italiano pode acabar em uma exposição de arte vietnamita. O caminho pelo sebo leva a mil outros caminhos —e, sem saber como, você termina o dia em casa com uma edição em capa dura de “O Sorriso do Lagarto”, de João Ubaldo Ribeiro, comprada a R$ 10. E nada dos dois livros que procurava.

Assim como acontece na capital paulista, porém, a aparente falta de lógica apresenta uma organização interna própria, e os 200 mil livros, 40 mil DVDs e CDs e 20 mil LPs respeitam um fio condutor.

Para entender o sebo, é preciso desvendar a cabeça de Messias. “Eu só trabalho, penso 100% do tempo na loja”, conta. Mesmo afastado, não há diversão. “Não tenho tempo para ler, não vejo filmes. Quero trabalhar até os 99 anos.” E depois? “Depois eu descanso.”

Sebo do Messias

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