O Bom Retiro são muitos bairros, no tempo e no espaço. Quem quiser se aventurar por lá vai encontrar épocas e países diferentes, todos misturados de uma forma que pode parecer bagunçada, mas quem o conhece sabe que é essa bagunça que o torna especial.
Para quem não o conhece, ele também pode parecer feio. Mas quem é íntimo de lá sabe que “feio” é o que não obedece às convenções do belo e que o Bom Retiro é lindo exatamente por não o ser. Apenas um dos paradoxos que constituem sua particularidade.
Quando chego ao Bom Retiro, volto para a rua da Graça, na esquina com a Ribeiro de Lima, onde judeus religiosos e seculares se reuniam, durante minha infância, para discutir negócios, casar suas filhas e fofocar em geral. Dizia-se que, naqueles chapéus misteriosos, que pareciam ninhos, alguns escondiam diamantes, contrabandeados nessa esquina que se chamava “pletzale”. Nunca saber se isso era ou não verdadeiro fazia parte da aura do lugar, que meu pai adorava frequentar.
O vendedor de canudinhos recheados com doce de leite passeava pelas ruas, gritando “atirabaitina”, palavra em torno da qual até hoje se mantêm discussões acaloradas. Já o vendedor de um quebra-queixo rosa e branco se postava na frente do colégio Scholem Aleichem, vendendo também beigales frescos, que hoje, na principal mercearia judaica de lá, a Menorá, descobri venderem também no modelo duro, além do mole, o que me indignou profundamente. Aliás, soube que modernizaram o nome Menorá, mas não quero nem ouvir falar disso.
Da minha janela, na antiga rua Correia dos Santos, hoje rua Lubavitch (outra indignação), eu via o pátio do colégio Santa Inês, de freiras, que continua lá até hoje, na rua Três Rios, considerada uma das dez ruas mais legais do mundo.
É claro: lá estão a Casa do Povo, coordenada pelo Bejamin Seroussi, judeu de origem francesa, que transformou essa instituição originalmente de exclusividade judaica numa casa que acolhe judeus, bolivianos e coreanos, além de organizar atividades para negros, indígenas e para a população trans, tudo com competência e criatividade.
Mas na Três Rios também estão a Oficina Oswald de Andrade e a Burikita, doceria iugoslava e judaica, com cujos donos meus pais conversavam em sérvio, assim como o Turquinho, bazar de todas as miudezas, onde, na minha infância, um velhinho rabugento atendia, sempre com uma régua de medir pano na mão.
Comer é uma necessidade, um dever, uma religião do Bom Retiro: tem o faláfel na José Paulino, o grego na rua da Graça, a búlgara na Silva Pinto, o hotel chique coreano na rua Prates, com um restaurante que tem mesas circulares e casamentos típicos, tem a Menorá na Guarani, o quilo insuperável da Correa de Melo e certamente um monte de outros estabelecimentos coreanos, bolivianos e judaicos que eu não conheço, já que agora moro num distante Butantã.
Estranho ouvir os sotaques não judeus por lá, mas gosto da ideia de o bairro ir incorporando outras línguas e culturas, porque nada se perde, mas, ao contrário, tudo se absorve. E assim o bairro é
judaico-coreano-boliviano, onde um faz negócios com o outro, assim como meu pai costumava negociar com os árabes na 25 de Março e era amigo dos mendigos do fundão do Bom Retiro.
Se um dia eu quiser reencontrar o tempo perdido, esse imponderável que se abate sobre todos os vivos, penso que só no Bom Retiro vou conseguir. Só provando um beigale com gergelim; uma bureka de queijo; uma sopa de mandele; só sentindo o cheiro do predinho onde morava a dona Ada; o cheiro da sinagoga da Newton Prado; só vendo o boteco embaixo do meu antigo prédio, na frente do qual eu descobri “Demian”, do Herman Hesse, e onde eu brincava de amarelinha com a Suely, é que vou poder compreender não somente o passado, mas o presente desse tempo perdido, que vai o tempo todo se perdendo, levando para nunca mais o que era para sempre.
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