Conheça o primeiro terreiro de candomblé tombado como patrimônio de São Paulo

Em sua terceira geração, Axé Ilê Obá tem ialorixá moderna e história de mais de 70 anos

Retrato de Mãe Paula de Yansã, ialorixá responsável pelo Axé Ilê Obá, primeiro terreiro tombado como patrimônio cultural em São Paulo

Retrato de Mãe Paula de Yansã, ialorixá responsável pelo Axé Ilê Obá, primeiro terreiro tombado como patrimônio cultural em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

Pintada nas cores vermelho e branco —as usadas pelo candomblé para representar Xangô, orixá da justiça, dos trovões e do fogo— a fachada de um terreno em uma rua tranquila do Jabaquara, bairro na zona sul da capital paulista, ostenta logo abaixo de seu número 77 uma placa pequena, redonda e azul que mudou a trajetória daquele local.

O sinal da Prefeitura de São Paulo aponta que, atrás do muro alto, está o Axé Ilê Obá, o primeiro terreiro de candomblé tombado no estado, em 1990. Foi fundado em 1950 por Pai Caio de Xangô para transmitir os ensinamentos da tradição, do culto e da cultura dos orixás, além de preservar as raízes africanas, afirma o texto da placa.

Placa de tombamento do Axé Ilê Obá, terreiro de Jabaquara, bairro de São Paulo
Placa de tombamento do Axé Ilê Obá, terreiro de Jabaquara, bairro de São Paulo - Karime Xavier / Folhapress)

Do lado de dentro da sede, construída em 1975, uma escada colorida fica em frente a imagens de Exu. É ela que guia quem chega aos pejis, espaços dedicados aos orixás, e também à cozinha e aos quartos de quem mora e trabalha ali.

Mas o caminho principal desemboca no barracão —o salão principal, onde são feitas as giras e festas. Amplo, ele tem uma grande coroa pendurada em sua parte central e as paredes decoradas com quadros de orixás, acompanhadas de explicações sobre seus significados. Uma delas ainda guarda a linha do tempo da casa, que passa por todas as gerações do terreiro —Pai Caio de Xangô, Mãe Sylvia de Oxalá e sua filha adotiva e sucessora, Mãe Paula de Yansã.

É do lado oposto, em um trono cercado por imagens de um preto velho, um caboclo e quadros de seus antecessores, que Mãe Paula se senta desde 2015, quando assumiu o posto da mãe.

Uma saudação e o machado de Xangô, o patrono da casa, estão pintados em vermelho sobre uma porta logo ao lado. Acima deles, em destaque, há um enorme crucifixo —de todos os símbolos, o mais incomum para um terreiro de candomblé, mas o que mais ajuda a explicar a fundação do Axé Ilê Obá.

Mãe Paula conta que um político da época em que a religião ainda era proibida em São Paulo procurou Pai Caio para sugerir que ele colocasse uma imagem de Cristo na parede. Assim, quando policiais invadissem o espaço, saberiam que, ao contrário do que pensavam, ali não se cultuava o mal.

"Ele ouviu conselhos de antropólogos, acadêmicos e pessoas do terreiro para que pudesse fortalecer esse solo, não só como religião, mas como parte cultural e de resistência para existirmos até hoje", diz a ialorixá.

Jaci de Oxum, Ya Ika do Axé Ilê Obá e madrinha de iniciação da ialorixá Mãe Paula de Yansã
Jaci de Oxum, Ya Ika do Axé Ilê Obá e madrinha de iniciação da ialorixá Mãe Paula de Yansã - Karime Xavier/Folhapress

Se o babalorixá lidou com a ilegalidade de um terreiro que tentava resistir às intolerâncias desde a fundação, foi na gestão de Mãe Sylvia, sua sucessora e sobrinha, que passos políticos foram dados oficialmente. Foi ela quem travou a batalha para garantir a manutenção e legitimação do espaço e deu entrada ao processo de tombamento do local, finalizado em 1990.

À frente do terreiro na época, a ialorixá se transformou em uma importante líder religiosa e política. Participou de palestras e congressos sobre o combate à discriminação racial, religiosa e xenofobia e tinha como um de seus objetivos a manutenção da oralidade e ancestralidade. Não à toa seu nome batiza o Centro de Culturas Negras do Jabaquara.

"Esse tombamento ajudou na resistência e existência do terreiro. Não só materialmente como imaterialmente, porque não dá nem para mensurar a importância de algumas coisas, como a continuidade da tradição de nossos ancestrais, dos mais velhos", diz Mãe Paula. "Isso vem para assegurar a nossa dignidade de culto, algo que já é legitimado por lei."

O legado da primeira ialorixá aparece nas falas da filha e em pinturas, fotos e objetos espalhados pelo barracão, mas também nas paredes do escritório de Mãe Paula. Dividindo o espaço com mais de uma dezena de diplomas da mãe, um quadro bem humorado diz muito sobre a gestão atual do terreiro: nele, se lê a frase "se sua pomba não gira não tente parar a minha". "Isso é coisa de mãe de santo jovem", diz Mãe Paula.

Aos 35 anos, a ialorixá millennial é tatuada e antenada. Em pouco tempo cita signos, política, saúde mental e a relação que quer ter com os seus filhos de santo —"se não for para fazer diferente eu nem faço". Ela brinca com a ausência de escolha que a levou a assumir o cargo, mas também fala sério ao mencionar o legado que quer construir no Axé Ilê Obá.

Mãe Paula não esconde suas posições —quando Lula foi eleito, postou em seu perfil no Facebook uma foto do político e um texto sobre o fim do retrocesso e da intolerância— e se orgulha em dizer que, pela primeira vez no terreiro, firmou a união de um casal LGBTQIA+.

"O candomblé é uma das religiões mais humanistas que existem no mundo. E o terreiro não é só uma prática religiosa, é também uma comunidade. Cultuamos a orixalidade, mas também a união, a ajuda ao próximo. Quando eu entro na vida de um filho é para agregar, respeitando as diferenças, porque não sou só eu que passo conhecimento. Também aprendo muito", afirma.

Desde que assumiu como ialorixá, Mãe Paula diz não ter passado por nenhuma grande situação grave de intolerância. Quando acontecem, diz preferir ser didática, mesmo que saiba que é um trabalho a passos curtos.

Ela conta do dia em que um menino jogou uma pedra na porta do terreiro. Sua primeira atitude, na ocasião, foi convidar a escola próxima ao Axé Ilê Obá para uma visita educativa com as crianças. Para ela, as pessoas têm que entender que ninguém quer ser apenas tolerado. "Essa intolerância é uma coisa muito perversa. Um dos jeitos para resistirmos a isso é com amor", diz.

Axé Ilê Obá

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