Batuques de pandeiro, roncos de cuíca e estrondos de bateria são alguns dos sons que pulsam na boemia do Bexiga, um dos bairros mais tradicionais de São Paulo. É ali que a pomposa escola de samba Vai-Vai tinha sede até o fim do ano passado, quando teve de deixar o local para dar lugar a uma estação de metrô.
Como já era tradição ouvir o samba da escola aos domingos, a companhia Teatro do Incêndio, que fica no mesmo bairro, sentiu a saída da Vai-Vai como um baque doloroso após décadas agitando aquelas ruas. Era preciso, então, homenagear o seu legado, conta Marcelo Marcus Fonseca, diretor da peça "Águas Queimam na Encruzilhada", que estreia neste sábado, dia 30.
Inspirado em moradores do Bexiga, o espetáculo é dividido em dois atos, com trilha sonora tocada ao vivo e histórias que se entrelaçam. Dez personagens compartilham diferentes experiências na região e vivem entre o brilho e os sonhos de uma escola de samba.
Enquanto uns vão aos ensaios e se preparam para desfilar no Carnaval, outros apenas bebem pelos bares ao redor. Há também quem associe os sambistas à imagem de pecadores e quem fique só observando o entra e sai.
Ainda assim, a peça não chega a retratar o interior da tal escola, que funciona como um pano de fundo fantasmagórico. As cenas se passam nas ruelas e casinhas do Bexiga, numa época não mencionada, na qual surgem tanto o clima festivo quanto violento do bairro.
Entre as histórias, há uma catadora de lixo solitária, uma cartomante que cuida de seu bebê adoecido, um casal que vive sob o desespero do desemprego, uma ex-passista que agora é beata, uma manicure com problemas de saúde, um compositor de samba alcoólatra e um poeta que faz sexo com um homem casado.
"Quem mora no Bexiga passa muito tempo na rua. É quase como viver no interior. As pessoas se conhecem, todo mundo sabe da vida de todo mundo, comentam até a hora em que você chegou em casa", diz Fonseca.
O diretor, que também escreveu a peça, afirma que se baseou nas conversas que ouve pelo bairro e em moradores da região —como Wanderley, compositor e sambista da velha guarda.
"Eu peguei uma meia dúzia de histórias do Wanderley e coloquei na peça", conta. "São referências a fatos reais. Mas, claro, as pessoas não são os personagens. Transformei todas as histórias."
Outro inspirado num dos frequentadores do Bexiga é Seu Luiz, um catador de latinhas que há anos transita pelo bairro e conversa com os moradores. Na peça, ele surge como uma mulher que guarda traumas do passado.
"Águas Queimam na Encruzilhada" traz ainda referências ao próprio Teatro do Incêndio, que fica literalmente numa encruzilhada, entre as ruas 13 de Maio e Santo Antônio.
"Na pandemia, mudamos muita coisa e pintamos o chão de preto e branco, porque são as cores da Vai-Vai", afirma o diretor. "Um trabalho paralelo que queremos começar é o de acolher um samba em frente ao teatro."
Ele diz ainda que a saída da escola deixou um vácuo que, aos poucos, vem sendo preenchido com novos pontos de samba no bairro. E acrescenta que o Bexiga é "abandonado desde sua fundação".
"Aqui é uma ilha que ficou isolada. Uma ilha feita de gente, abandonada no miolo de São Paulo. O abandono é uma prática por causa da famigerada especulação imobiliária. É um bairro tombado, não entendo como estão subindo prédios", diz ele, numa referência a uma antiga disputa imobiliária envolvendo o Teatro Oficina, de Zé Celso, e o Grupo Silvio Santos.
"É um bairro de força para o teatro. Temos o Oficina, o Sérgio Cardoso, o Ágora, o Incêndio", diz. "Só Exu para barrar e dizer que vamos preservar a história."
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