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Teatro

Musical 'Evita Open Air' navega no populismo e transforma política em mercadoria

Espetáculo recria o espetáculo clássico em um palco ao ar livre no parque Villa-Lobos, em SP

Evita Open Air

O musical "Evita", dos britânicos Tim Rice e Andrew Lloyd Webber, foi criado em 1976 e estreou em Londres dois anos depois, passando oito anos em cartaz, com mais de 3.000 apresentações. Assim como na criação anterior da dupla, a ópera rock "Jesus Christ Superstar", de 1970, o espetáculo lida com a construção de um mito e se interessa pelo fascínio que ele exerce.

A personagem histórica, segunda mulher do argentino Juan Domingo Perón, ainda hoje é um ícone no imaginário do país. O poder magnético que exercia em seus discursos, a sensibilidade para com os mais fracos, a sua beleza e a morte aos 33 anos criaram uma aura mágica e religiosa em torno dela. O refrão "Evita Perón, la santa peronista!" ressoa durante o musical, sempre em coro, como um grito de massas, ressaltando a adoração mítica que ela causava.

Cena de 'Evita Open Air', em cartaz em SP, no parque Villa-Lobos
Cena de 'Evita Open Air', em cartaz em São Paulo, no parque Villa-Lobos - João Caldas/Divulgação

Ao mesmo tempo, ao longo da peça, vemos uma mulher de natureza ambiciosa, que se aproveita de relacionamentos com homens influentes para empreender sua escalada social. É ela também quem incita um relutante Perón a avançar na conquista do poder, como uma Lady MacBeth moderna, que apoia a repressão violenta contra críticos de seu marido.

Tudo indica que Tim Rice usou como um dos materiais de referência uma biografia antiperonista pouco simpática à figura de Eva Duarte, "The Woman with the Whip", escrita em inglês pela autora argentina Mary Main, em 1952.

A ideia é que Evita aparecesse com seu brilho intenso, mas também gerasse desconfiança. Para ressaltar esse jogo pendular, entre o fascínio e a crítica, Rice inventou um narrador para o espetáculo, chamado Che, em referência ao revolucionário argentino, sempre a pontuar sarcasticamente os lances populistas e a retórica demagógica de Eva.

Mas, como se percebe logo na grandiosa montagem atual, Evita se sobressai e acaba por ofuscar tudo a seu redor. Apesar das ressalvas de Che e mesmo que as letras das canções tentem assinalar contradições, como, por exemplo, a proximidade do casal Perón com o fascismo de Franco na Espanha, a efusiva e solar estrutura musical reafirma sempre o fulgor da personagem.

A força daquela impressionante mulher é o que parece ter encantado Madonna quando pediu para interpretar Evita em 1996, na versão cinematográfica do musical. Tal conexão inusitada entre a figura histórica e a grande diva da música pop, contudo, dá a ver também o alto potencial mercantil que um mito contemporâneo contém.

Aí está um aspecto que brota de todos os lados em "Evita Open Air". Já na entrada do espaço construído ao ar livre no parque Villa-Lobos, passamos por várias tendas vendendo produtos argentinos como suvenires. O palco, erguido num parque público, poderia anunciar uma proposta aberta e democrática de um teatro-estádio, com espetáculos para multidões, levando as artes cênicas para fora de seus edifícios intimidadores.

Mas logo as cercas, tapumes, seguranças e bilheterias mostram que o custo é bem alto para viver aquela "experiência" a céu aberto. Assim como muitas vezes acontece na retórica populista, aqui também a praça pública e a multidão são apenas simulacros.

Muito já se disse sobre a tendência do populismo em fazer da política um tipo de espetáculo —ou, como sugere uma das canções, em vez de um governo, há um palco; em vez de ideias, o fervor de um show. A Evita contemporânea intensifica esse processo, o espetáculo faz das paixões políticas um produto. Em vez da reflexão, o brilho da mercadoria.

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