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Cinema

'Devo tudo ao cinema', diz projecionista que aprendeu a ler para exibir filme no Anexo Augusta

Salas 4 e 5 do Espaço Itaú se despedem do público no dia 16 com sessão gratuita

Anexo do Espaço Itaú de Cinema, na rua Augusta

Anexo do Espaço Itaú de Cinema, na rua Augusta Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Foram dois dias e meio de viagem de ônibus do sertão nordestino rumo à maior cidade do Brasil. Como todo migrante, José Alberto Martins de Andrade procurava uma vida melhor. Sem saber ler, acabou trabalhando como faxineiro e bilheteiro em cinemas da região da avenida Paulista.

Passou pelo Cine Arte, no Conjunto Nacional, e pelo Vitrine, que ficava numa galeria dos Jardins, ambos já fechados. Foi neste último —onde, em novembro 1996, pela primeira vez abriu a pesada cortina vermelha de veludo— que ele conheceu Eliene, com quem está casado há 25 anos.

O projecionista José Alberto Martins de Andrade
O projecionista José Alberto Martins de Andrade - Eduardo Knapp/Folhapress

Naturalmente, Andrade ambicionava melhorar de vida, o que veio a acontecer quando passou a trabalhar como projecionista, já no Espaço Itaú de Cinema. Para isso, no entanto, teve de aprender as primeiras letras. "O dono do cinema me avisou que só poderia ser projecionista se fosse alfabetizado", lembra ele, conhecido como Betinho entre os colegas.

Parte do salário passou a ser usada para pagar aulas particulares de leitura e escrita. Em seis meses, adentrou a cabine de projeção e, com o tempo, apaixonou-se até mesmo pelo barulhinho dos rolos de película em movimento: um mundo novo se abria para ele.

Andrade lembra, porém, que, com a projeção digital, que chegou ao Augusta entre 2014 e 2015, a permanência do projecionista na cabine passou a ser desnecessária. "Tudo é programado, um silêncio total", diz. A imagem gerada pela película na tela grande ainda é, na opinião dele, a mais nítida, "agradável e bonita de se ver".

Como exemplo, cita a viagem estética que teve ao assistir, em 2004, a "Diário de Motocicleta", filme de Walter Salles, que retrata a jornada de Ernesto "Che" Guevara (interpretado por Gael García Bernal) pela América Latina. "Já estava dominando bem as letras quando assisti. Aí foi só embarcar no filme."

Cena do filme 'Diários de Motocicleta' (2004), de Walter Salles
Cena do filme 'Diários de Motocicleta' (2004), de Walter Salles - Divulgação

Além do projetor, os antigos filmes também chamavam a atenção de Andrade por chegarem à sala em latas.

Numa retrospectiva do cineasta português Manoel de Oliveira (1908-2015), promovida por ocasião da Mostra Internacional de Cinema, em 2005, Andrade impressionou-se com a quantidade de latas em que o filme chegou: foram necessárias 15 delas para acomodar os rolos de película de uma projeção de mais de quatro horas de duração.

"Na hora, percebi que o filme ia ser longo", lembra, saudoso e bem-humorado.

O filme era "Amor de Perdição" (1979), um épico histórico português baseado no romance de mesmo nome do romântico Camilo Castelo Branco. O cineasta, depois de alguns cortes, contou a história em quatro horas e 22 minutos de projeção. "Foi o mais longo que passou pelas minhas mãos e pelos meus olhos", recorda-se o projecionista.

O filme português ficou na lembrança mais pela longa duração e pelo trabalho de emendar 15 rolos de película do que pela história em si.

Situação diferente deu-se com o brasileiro "Lavoura Arcaica" (2001), de Luiz Fernando Carvalho, uma adaptação do romance de Raduan Nassar de mesmo título, que, para além dos rolos, foi pura fascinação.

"Veio em 11 latas. Precisava de pelo menos uma horinha para montar. Mas que beleza de filme, hein?"

Nos anos 1990, ainda em sua cidade natal —a pequenina Coremas, no interior da Paraíba—, conheceu como cinema apenas filmes de teor cristão, como "Os Dez Mandamentos", exibido na escola pública com o apoio da paróquia local. Na cidadezinha, que hoje tem cerca de 15 mil habitantes, continuou morando a sua família, a quem ele enviava ajuda financeira.

Andrade mal poderia imaginar tudo o que aprenderia mais tarde.

Ambiente do anexo do Espaço Itaú de Cinema Augusta
Ambiente do anexo do Espaço Itaú de Cinema Augusta - Eduardo Knapp/Folhapress

Hoje, aos 47 anos, ele reconhece que o cinema lhe deu tudo na vida. "Mudou a minha forma de ver o mundo. Ajudei a minha família, me casei, comprei casa, carro e ainda pago a faculdade do meu filho, que será advogado", diz com orgulho.

Há 23 anos, Andrade vem atuando como projecionista em diferentes cinemas da rede do empresário Adhemar Oliveira, na maioria das vezes, em salas do Espaço Augusta, inaugurado no dia 6 de outubro de 1993.

Esse ambiente, ponto de encontro de cinéfilos, foi, sem dúvida, um dos responsáveis pela revitalização do hoje chamado Baixo Augusta. "Gosto dessa coisa de ver a pessoa na rua, circulando, e aí ela entra no cinema para ver um filme. Esse é o propósito. Tem vida", emociona-se ele.

Decoração do Cine Café Fellini, instalado no anexo e que também será fechado
Decoração do Cine Café Fellini, instalado no anexo e que também será fechado - Eduardo Knapp/Folhapress

Dividido em dois endereços, um defronte ao outro, o Espaço Augusta terá de se desfazer do Anexo (onde ficam as duas salas menores e um café), que será entregue a uma incorporadora, responsável por erguer mais um edifício na região.

Na próxima quinta-feira (16), depois de 28 anos de história e 93.744 sessões, o Anexo se despede do público. Às 20h, as duas salas (uma com capacidade para 88 pessoas e a outra com 33 poltronas) exibem o documentário "A Última Floresta", filme que retrata o cotidiano da tribo indígena yanomami e a luta de seus integrantes para preservá-la.

Aos cinéfilos, restará preservada apenas a memória de mais um cinema de rua que sucumbe ao crescimento urbano. A entrada para a última sessão é gratuita, e os ingressos serão distribuídos uma hora antes de seu início.

Em cada unidade da rede Espaço Itaú há ainda um projetor de filmes de película para exibir clássicos do cinema.

Na próxima quinta, o aparelho que fica no Anexo irá para outra sala, em um dos três endereços da rede em São Paulo. Destino semelhante terão os funcionários do Anexo, entre os quais Andrade.

Três dias depois da partida do cinema, no domingo (19), o jardim, repleto de pés de jade, costelas-de-adão e lágrimas-de-cristo, despede-se do Cine Café Fellini. Dos sete quadros na parede, ao menos um, o que homenageia o grande cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993), que emprestou seu nome ao café por tantos anos, também vai atravessar a rua para inspirar o café do cine Augusta.

Com 30 anos de existência, a quaresmeira hoje esverdeada, há tanto tempo dando sombra e flores ao público, não sabe se viverá até a chegada da próxima primavera.

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