No Cariri, no interior do Ceará, uma das principais celebrações do ano é o reisado, uma manifestação popular que homenageia o nascimento de Jesus e a chegada dos Três Reis Magos. Na festa, pessoas se juntam para cantar, dançar e simular disputas com espadas. O roteiro da brincadeira pode ter ainda pequenas meninas coroadas como rainhas –até que crescem e precisam passar suas coroas para outras garotas mais jovens.
Isso serviu de inspiração para "No Terreiro de Yayá", peça infantil escrita pela jornalista e escritora Gabriela Romeu em parceria com Antonia Mattos, que dirige a produção. Na trama, uma menina rainha entra numa jornada pelo sertão em busca de sua coroa roubada. Numa alusão ao que ocorre no reisado da vida real, o espetáculo traz um rito de passagem: é só depois de encontrar o artefato, que simboliza a infância, que a garota poderá passá-lo para outra menina e enfrentar os desafios de crescer.
A história lembra o que aconteceu com Maria Fabrisleny, cearense que protagoniza o curta-metragem "Meninos e Reis", também feito por Romeu. No documentário, Fabrisleny, na época com 11 anos, se prepara para a cerimônia do reisado em que entregará a coroa à sua irmã mais nova. Com isso, ela deixa de ser a rainha da festa e se prepara para entrar na adolescência.
"No Terreiro de Yayá" é um projeto do Clã do Jabuti, grupo de teatro conhecido por fazer produções que investigam a ancestralidade brasileira. Antonia Mattos, que fundou o grupo e dirige a peça, conta que queria homenagear sua família cearense desde a morte da avó, em 2016. "Na época, quis ir em busca da minha ancestralidade", diz.
Quando Mattos conheceu o livro "Terra De Cabinha: Pequeno Inventário da Vida de Meninos e Meninas Do Sertão", e o documentário "Reis e Meninos", ambos de Gabriela Romeu, soube que era a partir daquele material que queria produzir a peça de teatro que homenagearia seus antepassados.
O livro e o documentário compõem um projeto chamado "Infâncias", em que Romeu, que é paulistana, investiga as infâncias de todo o país. "No Terreiro de Yayá" é o primeiro texto da jornalista para o teatro.
Há, no reisado e na história da peça, um fator familiar. Na vida real, a celebração é geralmente feita por pessoas de uma mesma família ou comunidade, explica Romeu. Na ficção, o nome da avó da protagonista aparece no título da peça. Apesar de não ser interpretada por uma pessoa, Yayá é invocada constantemente para guiar a personagem em sua jornada.
Romeu explica que, por ter sido feita na pandemia, a montagem acaba sendo também uma homenagem às avós que passaram tanto tempo sem ver seus netos presencialmente.
Por causa da Covid, os ensaios foram todos feitos à distância. Foi só neste segundo semestre de 2021 que a equipe conseguiu se reunir. Em novembro, todos viajaram ao Cariri para filmar a peça, que ainda não deve ter apresentações presenciais em São Paulo.
Maria Fabrisleny, que protagoniza o curta que inspirou a peça "No Terreiro de Yayá", esteve entre as primeiras pessoas a assistirem ao espetáculo. Quase oito anos depois de entregar a sua coroa, ela está prestes a virar mestre no reisado, mais um avanço nos ritos da celebração. Romeu estará lá para registrar o momento.
"O espaço da mulher no reisado ainda precisa ser cavado, existem poucas mestras. A Maria é uma das mulheres que vêm com essa força", diz ela.
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