A última sessão de cinema a que fui aconteceu no dia 14 de março de 2020, um sábado de quase um ano atrás. Foi minha despedida de uma sala de verdade —na época, para rever “O Oficial e o Espião”, de Roman Polanski, que tinha acabado de entrar em cartaz. Àquela altura, já dava para suspeitar que a gente ficaria longe desses lugares. Mas não por tanto tempo assim.
Era uma das grandes salas do Belas Artes, no andar de cima, para as quais eu subia as escadas alegremente quando o cinema de rua de São Paulo foi reaberto, ainda na era da Gaumont, nos anos 1980.
Há um ano, ainda não existiam as restrições e os protocolos sanitários que viriam depois por causa da pandemia de Covid-19, mas todo mundo já sabia o que estava adiante. As ruas não tinham mais movimento, luzes e alegria. A Consolação parecia escura. O ponto de ônibus em frente ao cinema estava deserto. Mesmo os carros não passavam.
O cinema me parecia naquele dia o lugar mais seguro da cidade, com não mais do que 15 espectadores, talvez menos. Ninguém usava máscara, mas escolhia onde sentar —longe uns dos outros, naturalmente.
Desde então, a tela de cinema só me aparece em sonhos. De lá para cá, a pandemia ajudou o streaming a se consolidar. Mas todo mundo já sabia que, com vírus ou sem vírus, isso iria acabar acontecendo.
É verdade que essas plataformas se tornaram protagonistas nas vidas das pessoas, mas tudo tem dois lados. Não queira assistir a um filme mudo em nenhuma delas, por exemplo. Esses títulos parecem elementos viróticos a serem combatidos. O Telecine Cult é uma exceção, mas só às vezes. Nem o sucesso de Chaplin na pele de Carlitos é fácil de achar no streaming.
Afinal, a indústria não luta mais por audiência, mas por assinantes. Ou melhor —pelo dinheiro que nós, assinantes, podemos gastar com cada plataforma. Se a coisa continuar assim, tudo o que ganhamos vai ser usado no streaming.
No mais popular deles, a Netflix, boas coisas apareceram —como “O Irlandês”, de Martin Scorsese, que estreou um pouco antes da pandemia. Lá também encontrei boas séries para seguir na quarentena, caso de “The Crown” e “Dix pour Cent”. Isso sem falar no espetacular “Twin Peaks”, de David Lynch, e do filme “Relatos do Mundo”, com Tom Hanks, que estreou há pouco. Mas há outras possibilidades. O Belas Artes à la Carte tem bons filmes clássicos.
O Mubi é irregular, mas não faltam preciosidades —onde mais ver os curtas amadores de Eric Rohmer ou o “Los Silencios”, de Beatriz Seigner?
Em todos é possível achar alguma coisa, embora o melhor geralmente esteja escondido. É preciso garimpar, por exemplo, produções brasileiras. O filme “Arábia” está no Now. A série “A História da Alimentação no Brasil”, de Eugenio Puppo, fica no Amazon Prime. Já “Temporada”, de André Novais Oliveira, está na Netflix.
Dizer que a vida mudou com a pandemia soa um pouco ridículo a essa altura. Quando você passa quase um ano sem ver a cara da rua, ir ao cinema, visitar amigos e receber filhos, é claro que sua vida se transformou. Para quem dá aulas, foi ainda mais difícil.
As aulas passaram a acontecer via computador. Primeiro, por Skype. Qualquer garoto pode saber mexer nisso, mas é algo difícil para um tiozinho como eu, que só confia na caderneta para anotar os telefones. Graças à infinita paciência do meu aluno Rodrigo Rotta, aprendi.
O Skype quebrava o galho, mas era ruim para mostrar imagens. Tentamos o Zoom, que na época ainda estava sendo descoberto. Foi um novo aprendizado para mim. Cada botão, um sofrimento; cada caminho, um risco. Mas foi.
Além de filmes, séries e aulas, sempre dou também uma olhada nos principais telejornais da televisão —geralmente, enquanto espero o cara do supermercado trazer minhas compras. Constato, de boca aberta, o quanto o jornalismo da Globo decaiu. Há ilhas de informação, pouca reportagem e muita opinião. Sempre a mesma gente. Sempre pouca gente. Parecem ter sentido o baque do governo Bolsonaro.
Que importa! Prefiro ir atrás do meus velhos DVDs. Já não existem locadoras nos bairros, poucas distribuidoras seguem vivas em São Paulo —com exceção, talvez, apenas da Versátil, que aceita encomendas e entrega em casa.
O DVD até pode ter sido morto pelo streaming, mas eles guardam algumas surpresas. Há quanto tempo não via “Intriga Internacional”, de Hitchcock? Um filme fantástico e, por alguma razão misteriosa, bem raro de ser visto na televisão e no streaming.
Em casa, as ideias vão e voltam. E isso me faz retornar aos filmes brasileiros. Onde eles estão? Temos uma geração notável de cineastas. Eu mesmo acho que é a melhor desde o cinema novo. Sérgio Augusto já escreveu que é a maior de todos os tempos.
Mas eles estão de asas cortadas —o que não tem nada a ver com a pandemia, sabemos. Mas esse é outro assunto e tenho que fazer meu treino funcional. Pelo Zoom, é claro.
Não vou gastar linhas falando das lives, que foram outra diversão da pandemia. São tantas, mas tantas, que raramente escolho uma para assistir. Se o trabalho agora está no computador e nos vídeos, quem consegue acompanhar a febre dessas exibições?
Mas os livros, sim, podem ser uma boa atividade na quarentena. Dá para receber os novos em casa ou acertar as contas com os que vi, desejei, comprei e nunca li. Louis-Ferdinand Céline, que tem títulos publicados pela Companhia das Letras, se tornou o meu autor do momento. Li e reli a sua trilogia sobre a Segunda Guerra várias vezes. Ele é racista e direitista, mas e daí? Escreve como ninguém.
Meu filho não abandona a luta para que eu entre ainda mais no universo digital —e insira os livros também nas telas, assim como as lives, os filmes e as séries. Quer me ver no Instagram e no Twitter, mas quase sempre me esqueço de como mexer neles. No Facebook, quase já não entro. Mesmo assim, comprei um Kindle para saber como é ler um livro digital. O escolhido foi “Martin Eden” —mas isso só depois de ver o longa, de 2019, que é muito bom.
O fato é que aos poucos a pandemia vai se tornando familiar. Nova cepa? Novas máscaras? Vacina que chega e não chega? Nossa vida gira em torno disso e começamos a nos conformar, esperando sempre Godot —ou melhor, aguardando que tudo passe, que voltem as festas, os jogos com torcida nos estádios, as sessões de cinema. Mas quando? Quando? Quando, Godot?
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