Quando Eduardo Kobra começou a carreira de artista, ele grafitava muros de madrugada em São Paulo, desenhando descrições brutas da vida urbana, trabalhando sempre rápido e de olho nos carros de polícia.
Na época, não era possível ganhar dinheiro como grafiteiro no Brasil. Quem passava costumava xingá-lo, tanto que ele foi detido três vezes pela polícia e recebeu dezenas de multas por vandalismo.
“Muitos artistas daquela época caíram de edifícios e morreram”, lembra Kobra. “E havia brigas violentas entre gangues rivais de grafiteiros.” Esse tempo passou.
Agora Kobra se consolidou como um muralista elogiado internacionalmente. E acidade de São Paulo, a maior da América do Sul, passou a abraçar —e a financiar— o trabalho de artistas que antes o governo perseguiu e criticou.
O resultado é uma explosão de arte que usa as paredes antes austeras de edificações como telas gigantes. As dezenas de murais recém-pintados ajudam a abrandar a aspereza de uma das megacidades mais caóticas do planeta, despejando brilho, poesia e crítica social aguda no horizonte urbano.
Durante a pandemia, o grafite seguiu se multiplicando, com artistas encontrando consolo e inspiração trabalhando a céu aberto nos meses em que as galerias, museus e espaços performáticos estavam fechados.
Muitos dos murais pintados nos últimos 12 meses fazem referência à crise relacionada à Covid-19, que matou mais de 500 mil pessoas no Brasil e aprofundou a polarização política.
Kobra pintou um grande mural mostrando crianças de diferentes religiões usando máscaras na Igreja do Calvário, em Pinheiros. Na avenida Santos Dumont, o artista Apolo Torres fez um grafite celebrando o exército de entregadores de aplicativo que manteve a cidade de 12 milhões de habitantes alimentanda enquanto as medidas de quarentena estavam em vigor.
Embora prefeitos anteriores de São Paulo agissem com hostilidade ou ambivalência em relação aos artistas de rua, a atual administração lançou no ano passado uma plataforma online chamada Museu de Arte de Rua 360, que cataloga e mapeia mais de 90 murais que podem ser vistos virtualmente por internautas ou visitados pessoalmente.
É fácil se deixar cativar por “Eu Resisto”, mural da artista Mag Magrela que mostra uma mulher de joelhos, com as mãos em posição meditativa e a palavra “presente” escrita no peito.
Um mural de Mauro Neri, que retrata uma mulher negra olhando para o céu com os olhos brilhantes e arregalados, sob a palavra “realidade”, está entre as diversas pinturas criadas no ano sobre a injustiça racial. “A experiência de ver essas artes torna a cidade mais humana, mais colorida e mais democrática”, diz Alê Youssef, o secretário de Cultura paulistano.
Desde 2017, o governo municipal gastou cerca de R$ 8 milhões em projetos de arte de rua.
O grafite se desenvolveu como arte no Brasil na década de 1980, com artistas que extraíam inspiração do cenário do hip-hop e punk de Nova York, numa empreitada ainda masculina, alimentada principalmente por artistas de comunidades marginalizadas.
Os rabiscos e desenhos eram uma forma de rebelião, diz Kobra, de pessoas que se sentiam impotentes e invisíveis na metrópole superlotada. “Fui criado em um mundo onde havia muita droga, crime e discriminação, onde pessoas como eu não tinham acesso à cultura”, diz o grafiteiro de 46 anos. “Era uma forma de protestar, de existir, de espalhar meu nome pela cidade.”
A maior parte dos artistas que se tornaram conhecidos durante a era em que a arte de rua ainda existia como underground aprenderam observando seus pares, e não nas universidades, afirma Yara Amaral Gurgel de Barros, 38. Ela escreveu uma tese de mestrado sobre o muralismo em São Paulo.
“Eles aprenderam nas ruas, vendo os outros desenharem, estudando como usavam os pincéis e os rolos de pintura”, explica Barros. “A maioria é autodidata, e suas técnicas eram ensinadas de pessoa para pessoa.”
Por volta da década de 1990, a proliferação da arte de rua passou a afetar uma paisagem desordenada e sobrecarregada. Por anos, São Paulo teve pouca regulamentação quanto à publicidade de rua, o que fez com que boa parte da cidade —o que inclui uma série de edifícios com pelo menos uma empena sem janelas— terminassem servindo de espaço publicitário.
Em 2006, quando a Lei Cidade Limpa extinguiu a publicidade e houve a retirada dos outdoors, os muralistas começaram a tratar a repentina abundância de paredes nuas como um convite para pintar —inicialmente sem permissão e mais tarde com o apoio da prefeitura.
Os grandes espaços em branco eram um convite apetitoso para Mundano, um conhecido muralista e grafiteiro de São Paulo, que disse que a arte exibida em galerias e coleções privadas jamais o interessou.
“Sempre me senti desconfortável com a arte convencional porque ela é principalmente para a elite”, disse Mundano, que só usa seu nome artístico. “Na década de 2000, saí às ruas com ideia de democratizar a arte”, diz.
Em 2014, ele começou a pintar os carrinhos precários dos recolhedores de lixo reciclável, transformando-os em coloridas peças de exposição. A iniciativa, que ele apelidou de “envenenando o carrinho”, encheu os trabalhadores de orgulho. Mais tarde, o artista criou um app para celulares que permite que as pessoas entrem em contato com os recolhedores de lixo que trabalham por perto.
“Sempre quis que minha arte fosse útil. A arte pode resolver problemas cruciais no Brasil”, diz. Um destes problemas, na opinião dele, é a tendência a esquecer os muitos momentos de trauma do país —um fenômeno que ocupa posição central em seu trabalho como muralista.
“O Brasil é um país sem memória, onde as pessoas tendem a esquecer até a história recente”, reflete Mundano, parado diante de um de seus grandes murais, em um cruzamento movimentado no centro de São Paulo. “Precisamos criar monumentos aos momentos que nos marcaram como nação.”
O mural “Trabalhadores de Brumadinho” é uma homenagem aos 270 trabalhadores que morreram em 2019 na área de mineração em Minas Gerais. Na época, uma barragem da Vale que retinha resíduos de mineração, se rompeu. Mundano viajou ao local do acidente e recolheu mais de 250 quilos de lama e lodo, que ele usou para fazer o mural.
A pintura reproduz um quadro famoso de 1933 feito por Tarsila do Amaral. A obra mostra filas de trabalhadores, com rostos que refletem a diversidade dos brasileiros, mas cansados e desanimados.
Mundano disse que decidiu reproduzir o quadro para sublinhar que muito pouco havia mudado depois de se passar quase um século. “Eles continuam oprimidos pelas indústrias”, afirma.
A muralista Hanna Lucatelli Santos também se inspira em temas sociais e declara que sua missão é retratar como as mulheres mostram sua força.
Ela descobriu o poder dos murais, mesmo os de pequena escala, anos atrás, quando desenhou uma imagem do que ela define ser uma mulher “forte mas delicada” em sua sala de estar. Segundo ela, subitamente os relacionamentos na casa se tornaram mais harmoniosos e a energia mais positiva. “Fez com que as pessoas se tratassem com mais gentileza”, diz.
Santos, 30, tentou reproduzir esse efeito em escala maior ao pintar murais de mulheres que contemplam a cidade de cima, com serenidade e um ar místico. As criações dela também são uma refutação à maneira pela qual as mulheres muitas vezes são retratadas na publicidade e na arte brasileiras, majoritariamente criadas por homens.
“Você vê mulheres pintadas por homens que têm corpos artificiais e são completamente sexualizadas”, ela diz. “Essas figuras mais me oprimem do que me libertam.”
Uma de suas obras recentes, um par de grafites em paredes adjacentes, mostra a mesma mulher de frente e de costas. A imagem que a mostra de frente inclui as palavras “você já percebeu que somos infinitas?”. O outro lado apresenta a mulher carregando um bebê nas costas e de mãos dadas com uma criança pequena.
“Eu queria fazer com que as pessoas questionassem a maneira pela qual a sociedade contempla as mães”, diz. “E sei que uma mulher daquele tamanho, uma mulher mística, tem o poder de mudar o ambiente sob ela e de equilibrar a energia da rua, que tende a ser masculina demais.”
Tradução de Paulo Migliacci
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