Nos últimos anos, o teatro musical brasileiro viu crescer um segmento específico: os espetáculos biográficos sobre celebridades da música. "Marrom", sobre Alcione, faz parte dessa tendência –é, aliás, a parte final de uma trilogia idealizada por Jô Santana sobre figuras ligadas a história do samba no Brasil.
Esse tipo de peça encontrou um espaço de grande potencial mercantil. Afinal, para além do interesse no espetáculo, ele também mobiliza os fãs do homenageado e, com isso, atrai pequenas multidões a suas temporadas.
São normalmente acontecimentos cênicos de natureza híbrida, entre o teatro e um tipo de show que, com sofisticação técnica, interpreta os grandes sucessos do artista e supre a expectativa de um público ávido por ouvir aquelas canções.
Mesmo que ligado a essa espécie de receita de sucesso atual, "Marrom" é conduzido com competência. Um elenco quase todo negro sublinha a potência preta que sustenta a melhor cultura do país. O cenário, um dispositivo espiralar, propõe um passeio caleidoscópico pela vida e pela música da intérprete –fragmentos biográficos, influências musicais, cultura popular maranhense e as canções marcantes na voz de Alcione convivem nessa máquina cênica cheia de vida coletiva.
O espetáculo, que é dirigido por Miguel Falabella, também propõe uma espécie de hipótese sobre o significado da música de Alcione. Enfatiza-se como a intérprete conjuga uma série de referências musicais e forças artísticas, das formas da cultura popular maranhense ao jazz americano. Desde cedo ela viveu entre o trompete, o pandeiro e o acordeão.
Sua voz evoca as cantoras do jazz e do blues, como Sarah Vaughan ou Ella Fitzgerald, mas também a das matriarcas do samba carioca. O ecletismo musical é interpretado aqui como um marca artística de Alcione, capaz de articular elementos diversos de um modo intenso e verdadeiro.
Isso aparece no modo múltiplo como ela é representada no espetáculo: uma potência individual e um coro de mulheres negras.
"Marrom, O Musical" é conduzido por Cazumbá, personagem central do bumba meu boi e que, além de ser uma espécie de mestre de cerimônias do espetáculo, traz os elementos do boi para a cena, como o mito originário que ecoa os horrores da escravidão no Brasil, mas que também dá origem à celebração colorida, coletiva e cheia de vida no Maranhão: "Uma história triste, mas que termina em festa". A sentença se transforma numa máxima da música de Alcione.
Numa das cenas, diante da projeção de uma imagem com uma vasta periferia, ela canta esbanjando alegria. Sua força e sua voz nascem desse substrato, buscando transformar a tristeza em vitalidade. Falar de amor na música de uma mulher negra é como um gesto de resistência.
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