"Me sinto como se eu tivesse acabado de sair da cadeia", afirma a diretora Daniela Thomas sobre a sensação de lançar a segunda temporada de "Molly Bloom", espetáculo baseado na personagem do clássico "Ulysses", de James Joyce, que chega ao palco do Teatro Unimed, em São Paulo, nesta sexta-feira, dia 27.
"Estou imbuída do desejo de falar alto, de celebrar, de contar e recontar histórias", continua a diretora. Ela se refere à mudança de governo. É que, quando a primeira temporada do espetáculo estreou, no ano passado, ela o encarava como uma espécie de grito libertário e feminino contra os ataques à cultura promovidos pelo governo de Jair Bolsonaro.
Na montagem estrelada por Bete Coelho, Bloom é uma mulher livre, ciente de seus desejos sexuais e disposta a pô-los à prova. Agora, seis meses após a primeira temporada, é como se a montagem tivesse ganhado um outro significado.
"Naquele primeiro momento foi pungente e urgente resistir. Agora é um momento de abrir todas as possibilidades do papel da arte. Sem censura, com respeito, sem medo da inteligência, da livre circulação das ideias e do pensamento, com respeito à nossa profissão e tudo que a envolve", afirma Coelho.
A atriz, que em cena simula orgasmos e um jogo de sedução com a plateia, diz que vê agora a possibilidade de dar uma nova camada de leitura para a personagem —que ela desejava interpretar desde que foi apresentada a ela por Haroldo de Campos, há anos. "Me sinto melhor, mais sensual, mais livre e cheia de esperança."
Coelho acrescenta Molly Bloom a um panteão de ícones femininos a que se acostumou a interpretar, entre elas a "Mãe Coragem", de Bertolt Brecht, a "Cacilda!", de José Celso Martinez Corrêa, a "Medeia", de Consuelo de Castro, e a atriz Arkadina de "A Gaivota", de Tchékhov. Para a artista, todas guardam uma semelhança. "Combateram heroicamente os machos", responde.
No espetáculo que agora reestreia, o público acompanha a chegada de Leopold Bloom a sua casa, após um dia andando por Dublin. Ele se deita cuidadosamente para não acordar a sua esposa que, ele sabe, naquele dia cometeu um ato de adultério.
A partir de então, é ela quem inicia a sua própria odisseia mental, passeando pela infância, a relação com o pai, pelos primeiros namorados, o primeiro beijo, o filho morto, o casamento, as mudanças do corpo, a filha, o prazer de tomar cerveja no jantar e o que significaria explorar a sua libido com o sexo proibido.
Daniela Thomas pensou uma encenação multimídia, com câmeras que transmitem diferentes ângulos da montagem, fazendo com que o público tenha acesso a diferentes leituras da montagem e do monólogo da personagem.
Para esta segunda temporada, tanto a diretora quanto a atriz afirmam que há uma revalorização das artes e dos profissionais da cultura.
"Tentaram destruir todo artista e qualquer forma de arte que não servissem a interesses escusos. Mas nós nos sentimos novamente pertencentes à mátria e cheios de esperança", diz Coelho.
Daniela Thomas concorda, e diz que, embora aberta ao diálogo, "Molly Bloom" talvez não seja uma peça que fale a conservadores a ponto de fazer com que eles se interessem em avançar em discussões sobre a pauta de costumes, por exemplo.
"Cem anos depois do lançamento do livro, é triste pensar que ainda tenhamos que lidar com ideias conservadoras, as mesmas que o censuraram lá atrás. Molly é um personagem livre, puro desejo e verbo. Ela é impermeável a ideias conservadoras e deverá permanecer sempre assim."
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