Era um lugar feio e torto. Nos prédios em volta da praça, ficavam os bordéis. E havia os escritórios, os botecos, o ponto das travestis e uma pequena fábrica de produtos de metal. Também estava lá uma estranha estrutura de concreto fazendo sombra sobre tudo, a mata rala infestada de ratos em volta da saída do túnel da Ligação Leste-Oeste e as torres da igreja da Consolação.
Na primeira cena de “A Vida na Praça Roosevelt”, famosa peça encenada pelos Satyros poucos anos depois da virada do milênio, o ator Ivam Cabral iluminava com uma lanterna a maquete do ponto da cidade onde o teatro fincou raízes. Ele descrevia, com ar clínico, sem ódio nem paixão, tudo de mais banal e sujo no entorno daquele palco, um porão minúsculo escondido no paredão de prédios de quitinetes da Roosevelt.
O charme era muito mais a sensação de calor subterrâneo daquele lugar, e não a praça com ares de escombros, o discreto tráfico de drogas ali, os trombadinhas comandando assaltos a ponta de caco de vidro, as garotas no trottoir.
Essa Roosevelt pré-gentrificação, antes da reforma da praça que deitou abaixo o labirinto de concreto que dominava o lugar e no auge dos teatros que consolidaram uma espécie de off-Broadway punk e paulistana, o circuito que ia dos Satyros e dos Parlapatões ao Cemitério de Automóveis e ao extinto Club Noir do hoje canceladíssimo Roberto Alvim, foi o embrião do que os hipsters depois chamariam de Baixo Augusta num esforço controverso de “rebranding” e especulação imobiliária.
É fato que o saudoso Vegas, do empresário da noite Facundo Guerra, abriu as portas na Augusta, sua entrada de néon, couro dourado capitonê e tudo, quando os Satyros ganhavam as primeiras manchetes. Naquela mesma época, uma velha igrejinha na 13 de Maio também se converteu no templo do fervo batizado Glória. Mas também é fato que o circuito de palcos da Roosevelt já abastecia os bares e as boates do entorno com festeiros, drogados, criativos e toda a fauna que preferia à noite ao dia, as sombras do underground à luz do mainstream.
Muito antes dos bares assépticos de cerveja artesanal hoje ali, dos botecos que só tentam imitar os velhos pé-sujos e outros pontos mais com cara de butique, havia os espetinhos e os sobreviventes Papo, Pinga e Petisco e La Barca, para ficar só na Roosevelt. Na Augusta, o Ecletico’s Bar era o ponto estratégico de calibragem da noite, digamos, onde baladeiros se reabasteciam com aditivos ilícitos para baixar o efeito do álcool e esticar a festa noite adentro.
E ela durava. Eram os tempos da Lôca original, não sua versão repaginada e estéril, do Bar do Netão, este último também reinaugurado sem alma em outro endereço que convém esquecer, do Nova Babilônia, do sepultado Glória.
Se a Lôca irradiava música de pista bate-cabelo e uma aura de resistência queer pelo centro todo antes de aquilo virar o mais vendável Baixo Augusta, os inferninhos da rua ganharam uma breve sobrevida para então abrir uma nova era da noite paulistana.
Thomas Haferlach, o DJ alemão fundador da hoje clássica Voodoohop e meu antigo vizinho de prédio na Roosevelt, ensaiou naqueles velhos bordéis e barzinhos que transbordavam de suor e drinques os primeiros passos das festas que depois ganhariam as ruas da cidade, primeiro a calçada da Augusta antes de a rua se encher de prédios chamados “loft”, “today”, “hype living” e afins, e depois o túnel embaixo da praça, o tal Buraco da Minhoca, e o Minhocão mesmo, em noites que faziam tremer o elevado para o terror dos vizinhos nos arredores.
Esse movimento das noites sem teto, que tomavam o espaço público sem medo nem cerimônia, foi o grande vetor de mudanças em todo o centro paulistano. Logo, novas festas encheriam também os velhos bordéis da Bento Freitas, como o L’Amour, um prédio abandonado numa esquina da São João com o largo do Paissandu, o velho Cine Marrocos antes de ele se transformar numa ocupação. E, claro, o mercado imobiliário veio no encalço e hoje tudo é butique vegana e barzinho da moda.
Metrópoles, sabemos, são mutantes. Não adianta chorar o bairro gentrificado, transformado, encarecido. Mas a Roosevelt, a Augusta e os arredores do Copan, que nunca precisaram do truque chamado revitalização porque sempre foram cheios de vida, são a prova —vivíssima— daquilo que urbanistas entendem como a força propulsora do caos, os terrenos escuros, perigosos e ao mesmo tempo férteis que se regeneram nas tramas urbanas, das trevas ao calor das luzes néon e do metro quadrado valendo horrores.
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