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Bares

Com o fim do Bar Alemão, morte ronda locais históricos de São Paulo

Fechamento do Balcão e da Mercearia põe fim às memórias dos jovens do fim do século 20

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São Paulo

Envelhecer é, sem eufemismos, aproximar-se da morte. Morrem parentes, amigos começam a morrer, você morre devagar enquanto corpo e mente se desgastam. O lastro físico de memórias distantes se degenera ou se apaga. Morrem seus ídolos, morrem os lugares que você frequentou.

Em São Paulo, a morte ronda bares que compõem o acervo de afetos da minha geração. De gente que começou a beber nos anos 1980 e agora envelhece.

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Bar tradicional da Vila Madalena, a Mercearia São Pedro irá fechar as portas. (Foto: Gabriel Cabral/Folhapress) - Folhapress

A Mercearia São Pedro, na Vila Madalena, está há anos no vai-não-vai. Parece que estará "fondo" até o fim do ano. Nos Jardins, o Balcão tenta negociar um despejo que parece fatídico. O Bar do Alemão, cafofo da MPB na zona oeste, capitulou à fadiga. Fechou e deve reabrir, no mesmo ponto e sob velha direção, mas com nova identidade.

Peguei uma noite de quarta-feira, fria e meio vazia na cidade, para visitar os bares marcados para morrer. Gostaria de ter voltado ao Alemão, de recordações borradas por chope e steinhager.

Era moda beber os dois, juntos e às vezes misturados, com canapé de pão preto e croquete, ali e em outros bares alemães. O Joan Sehn, de Moema, falecido. O Léo, no centro, uma carcaça do que foi, hoje administrado por investidores.

Não sou fã de steinhager nem de bar com música ao vivo. Nunca fui. Assim, meu período de habitué do Alemão durou menos do que a fase metaleira de Robertinho do Recife. Quando ouvi falar do fechamento, fechado já estava.

O Uber me deixou no Balcão, que frequento desde o tempo em que o endereço era de outro bar, o Funilaria e Pintura –presume-se que, antes disso, havia lá uma oficina. Foi no Funilaria que tomei Jack Daniel’s pela primeira vez, raspando o fundo da carteira e me achando adulto demais, até um pouco americano.

Lá no fim dos anos 1980, os Jardins eram onde a garotada saía arrumada, perfumada e com estoque de Hall’s preto para pegar alguém, ou pelo menos tentar. Perto do Balcão, num mesmo quarteirão da alameda Itu, havia dois bares sob medida para dar uns "malhos" —gíria da época para o beijo de língua com mão boba.

Chamavam-se Leiteria Sena (chuto que fosse uma alusão ao filme "Laranja Mecânica", em que os anti-heróis bebiam leite) e As Últimas Nuvens Azuis no Céu da Alameda Principal. Nunca haverá outro bar com nome tão mela-cueca.

Em ambos, o mesmíssimo esquema. Luz baixa, som baixo, drinques docinhos e móveis diminutos que forçavam a proximidade física dos casais. Num dos pontos funciona uma pizzaria, o outro foi demolido para se erguer um prédio.

Demolição também é o destino provável do Balcão, onde acumulei litragem no fim do século passado e começo deste. Nos anos que antecederam Copa e Olimpíada, os correspondentes estrangeiros residentes em São Paulo se encontravam lá toda primeira quinta-feira do mês. Eu ia de penetra para azeitar meu inglês –fica mais fácil depois de umas doses.

O Balcão quer ser tombado, e há argumentos plausíveis para tanto. A esquina da Melo Alves com a Tietê é uma cápsula do tempo que preserva tudo como era antes. Mesmo balcão sinuoso e modernoso, mesmas obras de arte, mesmo astral, mesmas comidas. Mandei um carpaccio na ciabatta que veio como sempre, com gostinho de século 20.

São também os mesmos clientes. O Balcão é vítima de etarismo –há quem o chame de Balzacão– por reunir gente madura que vai lá desde os tempos de David Drew Zingg.

Pura maledicência. Os coroas do Balcão estão em plena forma, assim como o bar. Se o Balcão morrer, será de morte matada.

Não dá para dizer o mesmo da Mercearia São Pedro, minha parada seguinte. O bar sangra dolorosamente há anos, agoniza em tragédia familiar, de dois irmãos que já foram sócios e hoje são inimigos.

O ambiente de venda mequetrefe e meio encardida foi conspurcado com enormes TVs que passam futebol e noticiário. O França, garçom histórico da Merça, ficou para o apagar das luzes. Mantém o mau humor de sempre, mas parece cansado. Todos estamos.

A Mercearia é um raro vestígio da Vila Madalena que fez fama como bairro boêmio. Já morreu o Bartolo, na Fradique. Morreu o Sujinho, da Wisard com a Mourato. Os bichos-grilos foram desalojados pelos farialimers que ouvem sambanejo.

Com a passagem da Merça, o último bastião da velha Vila é o Empanadas, que não acusou problemas de saúde.

O bar original, com pôsteres de cinema brasileiro e um ar latino-americano genérico, foi ampliado indiscriminadamente. Encontrei o velho Empanadas fechado para faxina, com um mar de mesas disponíveis nos desalmados puxadinhos.

Não tive vontade de ficar e me perdi em devaneio ébrio sobre a finitude dos bares e a minha. Não é só a especulação imobiliária, é um ciclo inevitável e incontível.

Peguei uma empanada de carne –que não fez jus à memória afetiva– e o caminho da roça. Já era hora de um senhor da minha idade se recolher.

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Versão anterior deste texto afirmou incorretamente que o extinto bar paulistano se chamava As Últimas Nuvens Azuis no Céu da Alameda Tropical. O correto é As Últimas Nuvens Azuis no Céu da Alameda Principal. O texto foi corrigido.

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