Pandemia mata a rua Augusta nos Jardins, que vê explosão de placas de aluga-se

Por outro lado, praças da região ganharam vida e ostentam um clima de interior

Imóveis com placa de aluga-se na rua Augusta

Imóveis com placas para aluguel na rua Augusta, nos Jardins Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Quem passeia pelas ruas arborizadas do Jardim América às 9h de um dia de semana quase esquece que está no meio de São Paulo —predomina o cantar dos pássaros nas vias sinuosas entrecortadas por pequenas praças numa das regiões mais ricas da cidade, e só às vezes passa um carro. Moradores andam de bicicleta sem pressa.

No vizinho Jardim Paulista, cães se aproximam dos frequentadores da praça General San Martin com uma bolinha na boca, pedindo com o olhar para que o visitante a arremesse e faça disso uma brincadeira. Na área recém-renovada também é possível colher couve, hortelã ou cebolinha numa horta comunitária, fazer aula de boxe ao ar livre ou sentar e ver crianças se divertindo num parquinho com brinquedos de madeira que parecem ter sido projetados por um designer.

Essa paisagem calma, que se desenrola entre mansões protegidas por muros altos, muda completamente conforme se sobe em direção à avenida Paulista. A rua Augusta é a cara do abandono, um fantasma do que já foi —uma sequência de prédios degradados e dezenas de placas de aluga-se em comércios fechados. Há pedestres, mas a via virou um lugar de passagem e não de passeio, e as levas de jovens que até há poucos anos eram atraídos por bares e baladas moderninhas migraram.

É nesse imenso contraste que vive hoje a região que engloba os Jardins e parte de Cerqueira Cesar. Se da rua Estados Unidos para baixo a pandemia parece ter tido um efeito benéfico ao promover a revitalização e a ocupação de espaços públicos verdes pelos moradores e forasteiros, no outro sentido fica evidente a devastação que a Covid trouxe para a área, alterando-a definitivamente e ajudando a enterrar de vez sua aura, processo que já acontecia antes da pandemia.

“Mudou muito a característica dos espaços públicos hoje, tem mais pessoas andando pela rua, fazendo exercício”, diz Daniela Seibel, presidente da AME Jardins, a associação de moradores dos Jardins. A entidade cuida da zeladoria de 64 pontos entre os jardins Paulistano, Europa, América e Paulista, entre praças grandes e pequenas, canteiros e rotatórias. Segundo ela, mesmo com as medidas de relaxamento da pandemia, quem faz esporte não está voltando às academias e prefere seguir usando as praças, que viraram também local de encontro de tutores de cachorro e passaram a receber aniversários de adultos.

Rua Rutília, no Jardim América
Rua Rutília, no Jardim América - Eduardo Knapp/Folhapress

Seibel afirma ter notado um aumento na procura por casas nos Jardins durante a pandemia, por famílias que saíram de apartamentos e foram morar com mais espaço, ocupando e reformando imóveis que estavam há anos fechados. Esta é uma característica da parte mais rica da região, que tem casarões avaliados em dezenas de milhões de reais em estado de abandono por falta de manutenção. Como o bairro é tombado pelo patrimônio histórico, os imóveis não podem ser desmembrados ou ter outro uso além do residencial unifamiliar.

A renovação das mansões e das praças veio junto da abertura de espaços culturais ali perto. Na alameda Lorena, numa vila de casas projetada pelo arquiteto Flávio de Carvalho nos anos 1930, surgiram novas galeriasa segunda unidade da Bergamin & Gomide e o espaço Cama, que reúne quatro galerias e uma editora de múltiplos de obras de arte. Ambas se juntaram à galeria Sé, aberta na vila em 2019, formando um conjunto que fica a poucos metros da outra unidade da Bergamin & Gomide, na Oscar Freire, da galeria Luisa Strina, na Padre João Manoel, e da Casa Triângulo, da Zipper e da Dan, as três na rua Estados Unidos.

Na mesma alameda Lorena, contudo, o fechamento do Suplicy Cafés, que operava havia 17 anos e atraía diferentes tipos de público, do conhecedor de cafés ao turista eventual, tirou boa parte da vitalidade da rua. O que de mais animado aconteceu naquela quadra durante a pandemia foram as filas imensas —e quase sempre sem respeito ao distanciamento social— dos frequentadores do supermercado chique Santa Luzia, eternamente lotado.

Mais para cima, o Ritz, bar e restaurante ícone da cidade, segue ativo como único ponto medianamente interessante da alameda Franca. “As pessoas passavam horas no Ritz. A gente pegava uma mesa e ficava para sempre. E também porque ficava aberto o dia todo. Tinha essa lenda do escritor Caio Fernando Abreu ficar muito tempo lá, escrevendo lá. Isso dava uma sensação de uma boemia glamurosa”, lembra a jornalista Erika Palomino, que cobriu por anos a vida noturna de São Paulo na Folha, ao comentar como era animada a década de 1990 no restaurante.

Embora nunca tenha sido oficialmente gay, o Ritz foi adotado pela comunidade LGBTQIA+ durante muito tempo —o local era uma opção para paquerar um público com mais grana, disposto a gastar várias vezes mais do que os frequentadores do Gourmet, também na alameda Franca, este sim um bar voltado ao público homossexual masculino. Com cara de boteco e cerveja de garrafa a R$ 10, o Gourmet fechou as portas em 2017, depois de 27 anos servindo a região, e entrou para a história como o último remanescente de uma cena gay que ferveu o bairro.

Nation, Massivo, Ultralounge e Sogo foram algumas das baladas responsáveis por tornar a área um ponto de encontro dos descolados, entre o fim da década de 1980 e pouco antes de 2010. Tinha também o Hell’s, na Estados Unidos, o primeiro after-hours do país no auge da cena de música eletrônica. Os clubes eram frequentados pelo mesmo público que, durante o dia, comprava roupa na galeria Ouro Fino, na rua Augusta, fazendo da área uma referência de moda, noite e comportamento para o país todo.

Entrada para a Galeria Ouro Fino, na rua Augusta
Entrada para a Galeria Ouro Fino, na rua Augusta - Eduardo Knapp/Folhapress

Mas isso tudo foi varrido da região no decorrer dos anos, que ficou bem mais careta e perdeu o posto de bacana para as festas de rua no centro, num primeiro momento, e depois para os bairros de Santa Cecília e Pinheiros. Palomino credita o declínio dos Jardins ao próprio caráter do público da noite, sempre em busca de lugares novos, e lembra que a vida noturna da cidade foi se deslocando para outros locais. Ela cita também casos de violência à comunidade LGBTQIA+, afirmando que começou a ficar mais perigoso circular de um bar para o outro na região dos Jardins.

Por fim, a Oscar Freire entra nessa conta. “Aquele mundo dessas lojas de luxo, lojas de importados, trouxe um outro tipo de frequência para o bairro que esse público mais underground ou alternativo não tinha muito interesse em frequentar ou ser visto ali. Deixou de ser cool esse lugar também.”

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