Os fins de semana parecem que estão voltando ao normal nos bairros de Santa Cecília e Vila Buarque, no centro de São Paulo.
Em um domingo de sol, mas com o ventinho gelado do outono, pessoas tiram as máscaras para ocupar bares abertos. O jovem morador de uma quitinete com chão de taco sai para passear com o cachorro, o vendedor de frutas oferece um cacho de uvas à beira da calçada e o pagode segue solto no largo em frente à paróquia Santa Cecília.
Virou até meme dizer que a região é ocupada somente por artistas, fãs de Belchior e pais de samambaia. Embora a juventude alternativa chame a atenção, idosos, comerciantes e estudantes também aproveitam que o governo de São Paulo diminuiu as restrições impostas pelo plano de quarentena para voltar a circular pelas ruas —mas o cenário que eles veem é outro após mais de um ano de pandemia.
Desde março de 2020, a crise fechou bares, restaurantes e endereços clássicos. Foi o caso de parte das casas comandadas pela empresária Lilian Gonçalves na rua Canuto do Val, por exemplo, que encerraram atividades.
Mas se engana quem acha que, ao botar o nariz na rua, o cenário vai ser de uma sucessão de placas de aluga-se. Na mesma Canuto do Val, os bares Moela e as quatro unidades do Jhony’s se mantêm firmes e funcionando.
E uma série de pontos vagos foram ocupados por novos negócios —caso da livraria Gato Sem Rabo, dedicada somente a obras de autoras mulheres, do restaurante Cora e do boteco Bagaceira, gestados enquanto tudo estava proibido de abrir as portas.
Mas tanto clássicos quanto novidades preservam o ar jovem e moderno que ficou célebre na região nos últimos anos. Esse espírito é delimitado pelo Minhocão —oficialmente, elevado presidente João Goulart— e também pela avenida Angélica.
É nesse miolo que os bairros mostram seus edifícios residenciais cercados de cafeterias com grãos especiais, restaurantes bacanas, bares sofisticados e lojas de design.
É possível dizer que um dos marcos ocorreu em 2014, quando uma portinha foi aberta em frente à praça Rotary. Com bebidas servidas em ambiente minimalista, o café Beluga —hoje chamado de Takko— foi pioneiro. “Escolhemos esse ponto porque a gente mora perto e queria chegar andando ao trabalho”, explica Rodolfo Herrera, 38, sócio do espaço.
Ele diz que, antes da pandemia de coronavírus, a cafeteria era parte de uma espécie de itinerário. “Aos fins de semana, vinha muita gente de outros bairros para cá. Eles almoçavam na Barão de Tatuí, passavam em uma loja no caminho, paravam para tomar um café aqui e depois iam para um bar. A pé.”
De fato é gostoso andar pela região. O antropólogo Maurício Alcântara, que pesquisou a “hipsterização” desses bairros, diz que o que mais se ouve dos moradores é que eles não usam carro. “Não é qualquer jovem que escolhe a área. É gente em geral mais progressista, inclusiva e que quer estar no centro da cidade porque ele é apaixonante. Eles desejam viver essa vida urbana intensa, que não existe em locais como Moema”, diz.
Mas esse é, antes de tudo, um processo histórico. “Logo que eu vim para cá, costumava dizer que a Vila Buarque era um lugar que tinha arquitetos, artistas plásticos, puta e viado”, brinca o artista Leniton Dias em uma cena do documentário “As Cores da Vila”, de Luiz Carlos Lucena, que conta a história de quatro artistas plásticos que moram por ali há décadas.
Em muitos apartamentos, moradores antigos resistem e seguem vivendo na região. Com 72 anos, Mario Melilli chegou à Vila Buarque aos nove. Imigrante italiano, desembarcou com a família na rua Barão de Tatuí, onde mora até hoje e fez um império.
“Ele é o próprio barão da Tatuí”, brinca João Varella, 36, um dos nomes à frente da Sala Tatuí e da Banca Tatuí, livrarias que ficam na rua e são especializadas em publicações independentes. A Sala ocupa um andar do prédio de número 302, um dos que pertencem a Melilli na via —ele não revela de quantos imóveis é dono no total.
Os demais pavimentos do edifício abrigam escritórios de arquitetura e design e uma galeria de arte. O restaurante italiano Così funcionava no térreo até o fim do ano passado, quando se mudou para a região dos Jardins.
“Aqui estou e daqui não vou sair”, diz o barão da Tatuí, que comprou o imóvel da antiga pensão em que morava quando veio viver no Brasil e, após uma reforma, transformou na sua atual casa. Não é à toa que sua história se confunde com o entorno.
Foi nos anos 1960, com a inauguração do Donat’s Bar, que a família Melilli deu início a uma série de aberturas de bares e restaurantes naqueles quarteirões. Hoje, só Mario se mantém no ramo.
“Com a saída do Così, quero trazer a Talitha Barros, do Conceição Discos, para cá”, conta ele, referindo-se a outro restaurante que é disputado no bairro. “Ou outra pessoa. Mas tem que ser alguém ao meu estilo, que goste de tudo junto e misturado”, ele conta.
Embora a Barão de Tatuí tenha se tornado quase uma metáfora das mudanças do bairro, outros points badalados começam a aparecer —principalmente a 800 metros dali, na Jesuíno Pascoal, bola da vez da gastronomia local.
Mas, se as duas ruas exemplificam as transformações dos bairros, Herrera, do café Takko, acredita que Santa Cecília e Vila Buarque acabam refletindo também o que acontece hoje em dia no país como um todo.
“A região empobreceu muito neste ano de pandemia, apesar das aparências”, conta. “É essa coisa do Brasil, o nosso contraste brutal —ao mesmo tempo em que existem muitos prédios sendo construídos, aumentou também a população de rua.”
A praça é nossa
- A praça Rotary, também conhecida como praça da Vila Buarque, foi reaberta ao público depois de passar meses fechada devido à pandemia e às restrições do governo paulista
- Entre as ruas Major Sertório, Dr. Vila Nova, Dr. Cesário Mota Júnior e General Jardim, o espaço começou a receber de volta moradores e visitantes de segunda a sexta, das 10h às 16h, desde o último dia 17
- Dedicada à literatura infantil, a biblioteca Monteiro Lobato está ali desde 1936 —é a mais tradicional do gênero em São Paulo e no Brasil. Mas o espaço ainda não tem previsão de reabertura por causa da Covid-19
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