"Festa dos Bárbaros" propõe algo mais do que um espetáculo teatral. É um acontecimento entre a festa, a música e o teatro, envolvendo o público numa espécie de rito coletivo de resistência e celebração ancestral.
O ponto de partida temático é a chamada Guerra dos Bárbaros, um conflito que durou 70 anos, entre 1650 e 1720, quando diversas etnias indígenas do sertão nordestino combateram os avanços da colonização portuguesa.
No espetáculo da Cia. São Jorge de Variedades, a guerra de resistência indígena aparece na forma de uma festa inspirada nas celebrações da jurema sagrada —rito de matriz indígena, com bebida feita com essa planta com princípios psicoativos e elementos sincréticos africanos, presente nas regiões onde ocorreram os conflitos.
Para os devotos, a jurema é uma árvore que conecta mundos e tempos, como um portal que vincula os participantes do rito a uma rede de ancestrais e entidades da floresta. Inspirado nela, o espetáculo se estrutura também como um desfile de figuras míticas e populares, que constituem uma ancestralidade brasileira às margens da história oficial e que resiste no imaginário apesar da violência e dos massacres.
Tudo acontece ao ar livre, num espaço aberto do prédio da Funarte, em São Paulo. Um coro de artistas conduz uma cena vibrante, cheia de alegria e intensidade musical, com vontade de expandir os contornos institucionais do teatro e desenvolver outras formas de interação artística com a cidade.
Tamanha vida coletiva dá notícias de um dos mais importantes momentos do teatro brasileiro moderno e contemporâneo: o ciclo de politização do teatro de grupo, que ganha força e intensidade nos anos 1990 e avança pelas primeiras décadas do século atual.
A Cia. São Jorge de Variedades ocupa lugar importante neste ciclo da história recente do teatro, e "Festa dos Bárbaros" mostra que ainda há vitalidade ali, embora muitos grupos já não existam, assim como as redes de articulação entre eles.
Nas franjas do acontecimento, contudo, ronda um tipo de desconforto. As formas teatralizadas da jurema sagrada atravessam as cenas de modo dúbio. É difícil decifrar qual é a intenção do espetáculo: será buscar na liturgia religiosa elementos de composição estética? Ou a ideia é realizar um rito, no qual artistas tornam-se sacerdotes de um culto? Provavelmente há um pouco de cada um desses caminhos.
Ambos, contudo, parecem problemáticos. De um lado, há um tipo de enquadramento artístico de manifestações populares da fé. Como se uma moldura fosse colocada em torno de práticas religiosas do Norte e do Nordeste até o ponto de transformar seus elementos visuais e sonoros em obra de arte para circulação numa metrópole do Sudeste.
Ao mesmo tempo, a vontade de transpor a fronteira da arte e viabilizar ali um tipo de rito inspirado na jurema mobiliza uma atmosfera mística e religiosa que, pouco a pouco, vai corroendo a reflexão racional e parece só encontrar respostas para a desordem do mundo na ordenação mágica da religião.
Mesmo tratando-se de uma fé marginal, espaço de resistência popular, ainda assim há certo fascínio pelas forças místicas do mundo invisível —algo que acompanha o avanço da religiosidade na vida social do país.
São aspectos delicados que merecem ser debatidos, ainda que o trabalho coletivo da Cia. São Jorge e a vontade de fazer emergir na cena o avesso da história e a perspectiva dos vencidos deflagrem uma festa-teatro com grande intensidade artística e política.
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