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Teatro

Cemitério de Automóveis, que marcou a boemia de SP, fecha as portas e promete nova sede

Conhecido da cena alternativa paulistana, misto de teatro e bar vai mudar de lugar após dez anos

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São Paulo

São Paulo vai perder mais um espaço do circuito boêmio da cidade. Mistura de teatro e bar, o Cemitério de Automóveis anunciou nesta sexta, dia 28, que vai fechar as portas depois de funcionar por quase dez anos na rua Frei Caneca, na região central da cidade.

O espaço que abrigava uma sala de espetáculos, boteco e até uma livraria vai ser devolvido para o proprietário, que pediu o imóvel de volta nos últimos meses do ano passado. "Estava muito caro para a gente pagar, aguentamos por quase dez anos, mas a despesa é muito alta. Mesmo mantendo o bar aberto, a gente não consegue", conta Mário Bortolotto, escritor e dramaturgo que comanda o espaço.

Mas o público não deve ficar órfão por muito tempo. Mais do que um bar, o Cemitério de Automóveis era também a sede da companhia de teatro de Bortolotto. Aprovado em uma lei de fomento, o grupo vai migrar para um novo espaço, no número 155 da rua Francisca Miquelina, na mesma região e a menos de dois quilômetros de distância. A previsão é que a nova sede comece a funcionar em março.

Notícia que é boa para os fãs de teatro, mas que pode ser ruim para quem gostava mais do bar. Isso porque o novo Cemitério deve funcionar somente como espaço cênico, sem o balcão e as cervejas. Mas Bortolotto diz que os planos podem, quem sabe, mudar mais para frente.

"Acho que não é necessário abrir um bar. Mas a gente vai sentar e discutir, ver o que é melhor, se é legal ter talvez um café para receber as pessoas. Não temos certeza ainda", afirma o dramaturgo.

Fechado desde março de 2020, o teatro só conseguiu atravessar a pandemia por causa de um desconto no aluguel dado pelo proprietário. Com isso, o grupo não vai realizar nenhuma apresentação para se despedir do endereço –a estrutura interna já está até de mudança.

Bortolotto usou as redes sociais para anunciar a despedida da rua Frei Caneca. "Foram quase dez anos com um 'porrilhão' de peças de teatro, shows, lançamentos de livros, leituras, 'Terças em Cena', oficinas, 'Jazz Poetry', muita bebedeira, grandes histórias e bons papos com bons amigos", diz a publicação do local, que foi replicada do perfil pessoal do dramaturgo.

O ator e dramaturgo Mário Bortolotto, no Cemitério de Automóveis
O ator e dramaturgo Mário Bortolotto no Cemitério de Automóveis - Lucas Mayor/Divulgação

No texto, ele também menciona atritos do teatro com os moradores da região. "Não sentirei falta da vizinhança. Mas eles também não vão sentir falta da gente, com certeza. Está tudo certo. Bom para ambas as partes", continua a mensagem. Localizado em uma área residencial, o Cemitério tinha problemas constantes com os moradores por causa do barulho à noite.

"Todo o dinheiro que ganhamos com o Cemitério era usado para pagar as contas", disse Bortolotto em entrevista por telefone após o anúncio do fechamento. "Estamos saindo sem dívidas, ainda bem, mas é muito difícil ficar ali sem ganhar nada e sofrendo pressão dos vizinhos."

As dificuldades para manter as portas abertas vêm de antes da Covid. Em novembro de 2019, o Cemitério lançou um financiamento coletivo para arrecadar R$ 20 mil e, assim, impedir o fechamento.

Na época, os percalços financeiros teriam surgido por causa de problemas estruturais relacionados a uma caixa d’água, vazamentos e outras questões que demandavam reparos. A dívida do teatro impedia que houvesse uma manutenção.

Reduto de peças do circuito independente, saraus, mostras de cinema, oficinas e shows, o Cemitério de Automóveis chegou ao imóvel na rua Frei Caneca em 2012, com um projeto aprovado por uma lei de incentivo.

Esta foi a segunda sede do grupo, que está em São Paulo desde meados dos anos 1990. Antes, ocupava um espaço na rua Conselheiro Ramalho, na Bela Vista. Fundada em Londrina em 1982 com o nome Chiclete com Banana, a companhia foi rebatizada por Bortolotto e Lázaro Câmara cinco anos depois. A inspiração foi um trecho de "Obligatto do Bicho Louco", do poeta beat Lawrence Ferlinghetti.

As referências aos beatniks e às tirinhas de Angeli marcam o tom ácido, crítico, irreverente e underground do Cemitério de Automóveis. O mundo suburbano e os personagens marginalizados sempre foram os principais temas de suas peças.

"São essas figuras deslocadas que me interessam, que me fascinam. Acho que escrever sobre gente rica e feliz não dá uma dramaturgia boa, e não estou interessado nessas pessoas", disse o diretor à Folha em 2012.

Não à toa, parte da classe artística e boêmia da cidade assistia às peças e continuava no bar da casa até altas horas para beber e bater papo. "O espaço tinha uma pista maravilhosa", lembra o escritor Marcelo Rubens Paiva, um dos habitués do local.

Entre outros nomes que costumavam passar pelo balcão e pelos palcos estão os atores Matheus Nachtergaele e Celso Frateschi e músicos como Clemente, um dos pioneiros do punk rock no Brasil com a banda Inocentes, para citar alguns.

Para Paiva, o trabalho de Bortolotto e sua trupe lembra o da Factory, de Andy Warhol. "É uma Fábrica de teatro, né? Eles vivem o teatro, vão beber juntos, são muito amigos. É admirável que, em um mundo tão individualista como o de hoje, você tenha um grupo de pessoas que batalham tanto por uma coisa que não é exatamente para ganhar muito dinheiro. Eles fazem aquilo porque gostam", diz.

"E o Cemitério de Automóveis resumiu isso. De repente, ele fez um bar. E juntou as duas coisas, fez esse ponto de encontro com um lugar de ensaio, de produção, de literatura, de saraus, enfim. Foi perfeito", conclui o escritor.

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