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Bares e noite

Fim da Mercearia São Pedro mostra como SP abate os seus bares a marretadas

Reduto na Vila Madalena é lendário ponto de encontro de escritores, artistas e boêmios

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Antonio Prata
São Paulo

"Rua" deriva do termo latino "ruga". É a marca do tempo na epiderme da cidade. São Paulo nunca encarou bem a passagem dos anos. Submete-se toda hora aos bisturis mais carniceiros, preocupados antes com o pagamento das cirurgias do que com a saúde da (im)paciente. Daí essa cidade monstrenga, acúmulo de plásticas, preenchimentos e outras intervenções desastrosas. Fosse a Tanya, de "White Lotus", diria: "These incorporadoras are trying to murder me!".

Metrópoles menos atormentadas exibem com orgulho os cabelos brancos. Na Cidade do México é possível comer um taco e ver, ainda hoje, no teto do restaurante, o furo do tiro dado por Pancho Villa numa tarde de 1914. Em Buenos Aires você pode tomar um vermute nos mesmos cafés da Corrientes que Borges e Cortázar um dia frequentaram. Já em São Paulo os bares são abatidos a golpes de marreta: de metro quadrado em metro quadrado vamos destruindo o nosso patrimônio histórico, botando abaixo a nossa memória afetiva.

Ambiente do bar Mercearia São Pedro, inaugurado como mercearia em 1968, na Vila Madalena 
Ambiente do bar Mercearia São Pedro, inaugurado como mercearia em 1968, na Vila Madalena  - Thiago de Jesus/Folhapress

Por 55 anos, no número 34 da rua Rodésia, Vila Madalena, funcionou a Mercearia São Pedro. Conjugo no passado pois em breve todo o quarteirão, vendido a uma incorporadora, será posto abaixo, dando fim àquela inigualável mistura de bar, restaurante, livraria, videolocadora (jovens, perguntem ao ChatGPT), Sesc informal, Facebook orgânico, Tinder avant la lettre, parque de diversões, casa de repouso, coworking, codrinking, coliving e co-outras-coisas-que-é-melhor-nem-mencionar.

Conheço meia dúzia de casais que se formaram em torno daquelas mesas de fórmica bege clarinho —e o mesmo número que se desfizeram sob as míticas garrafas peludas, no alto das prateleiras. (As estalactites pilosas produzidas por alguma mistura radioativa composta por óleo de fritura, pó, fumaça da chapa, cigarro, escapamento, perdigotos e sabe-se lá o que mais se acumulava ali desde 1968, quando Pedro Benuthe abriu a loja de secos e molhados). Anos depois os filhos, Pedrão e Marquinho, transformaram o estabelecimento em bar —e etc. E será justamente do etecétera que sentiremos mais saudade.

Pelo menos duas gerações de músicos e escritores foram marcados pela Mercearia. De Nick Cave a Lulina. De Ciro Pessoa (ex-Titã, compositor de "Sonífera Ilha") a Lúcio Maia. De Reinaldo Moraes a Bruna Beber. Muitos livros foram lançados ali e tantos outros ali tramados.

Duas coletâneas foram especialmente produzidas na (e pra) Mercearia: "Uma Antologia Bêbada", organizada por Joca Reiners Terron e "Saideira: O Livro dos Epitáfios", pelo Joca e Marcelino Freire. A Revista Mercearia saiu em 2006, desafiando a maldição de que publicações independentes sempre fenecem no terceiro número: morreu logo no primeiro. Um piloto de talk show chegou a ser rodado no bar, numa madrugada. O teor da conversa foi tão, digamos, heterodoxo que, ao final, Reinaldo Moraes comentou "bom, talvez algum canal pornô de Amsterdã tope comprar".

Para que essa instituição paulistana não fique apenas na memória dos frequentadores —até porque, em muitas manhãs, a memória despertava um tanto embaçada— sugiro ao Joca e ao Marcelino uma última antologia bêbada: um livro de memórias sobre a Mercearia São Pedro ou de epitáfios para ela. Enquanto isso não acontece, ficamos com a lápide do Marçal Aquino, no livro "Saideira": "Se houver segunda temporada, vai passar em outro canal". Um pornô de Amsterdã, quem sabe?

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Versão anterior deste texto afirmou incorretamente que o bar Mercearia São Pedro fica na rua Duartina, e não na rua Rodésia. O texto foi atualizado.

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