O chef de cozinha, estrangeiro e muito famoso, discorria dias atrás sobre o boteco que acabara de abrir. Outra pessoa na mesma roda o interpelou. Argumentou que a casa talvez não fosse um boteco.
O chef retrucou e disse que era, sim, um boteco, pois servia feijoada aos sábados. Com orelha e pé de porco, frisou.
Desculpe, chef. Seu bar pode ser ótimo, mas não é um boteco. Boteco é A Juriti, que carrega o epíteto Rainha dos Aperitivos. E que nem serve feijoada, aliás.
A Juriti, desde 1957 no bairro do Cambuci (região central), serve rã, ostra, mexilhão, pastel, chouriço, ovos de codorna, picles, torresmo, lula, manjuba, ricota defumada, gorgonzola, frango a passarinho, coxinha, azeitonas e roll mops, que são sardinhas em escabeche com cebola. É muito petisco, só belisquete raiz, e nada que seu cardiologista aprovaria.
Essa mesma Juriti preenche outros requisitos básicos de um boteco, afora a longevidade e o cardápio: os garçons-patrimônio, a clientela fiel e mormente local, a despretensão de transcender a condição paroquial e, muito notório, a ausência das palavras "boteco" e "botequim" no nome do estabelecimento. Só recorre a elas quem não é boteco vero.
Sou cria do Cambuci e passei a infância passando em frente à Juriti, mas sem entrar. Meus pais não eram adeptos da botecagem familiar. Quando atingi a idade de beber, fui com as outras para o oeste, em Pinheiros e na Vila Madalena.
Porque não era cool biritar no Cambuci. Apesar de muito próxima da cidade dos cartões-postais –é colada à Liberdade e fica a 10 minutos da avenida Paulista–, a região passava longe dos roteiros de bares. Ainda passa.
Descobri tardiamente a Juriti. Descobri que a birosca do meu bairro é referência entre os mais afamados botequeiros de Belo Horizonte e do Rio. Cambuci alçado às alturas.
Da fachada aos banheiros nos fundos, percebe-se no ambiente que a Juriti sofreu mínimas alterações físicas nestes quase 65 anos de história. Um eufemismo para dizer que o lugar estacionou no tempo.
Afixada na parede azulejada, uma placa plástica preta com letras de encaixar aconselha o cliente insatisfeito a telefonar para 198, número da Sunab –órgão extinto em 1997.
No campo etílico, A Juriti é famosa pelas batidas (R$ 18) que já estão engarrafadas atrás do bar. Não sou fã, não recomendo, mas tome quem quiser e gostar de bebidas doces. Tem também chope, cerveja gelada e uma seleção ok de cachaças.
Dentre as comidas, a estrela absoluta é a tal da Joana D’Arc (R$ 43). Nome maroto, talvez meio cruel, para a linguiça calabresa assada no fogo de álcool, numa pequena estrutura envidraçada com chaminé que dá para dentro do bar.
Procure não perder a pirotecnia do preparo –é parte relevante do show, mas ninguém vai te chamar para vê-la. Ali não é o Paris 6. No prato, a linguiça vem fatiada e banhada em molho inglês, com pão ao lado.
Todas as frituras são sequinhas e saborosas: pastéis, coxinha, quibe e bolinho de carne (todos a R$ 3,50 a unidade). O torresmo (R$ 8,50) vem em duas versões: a pururuca de couro e a barriga de porco, com carne e gordura. Ambas ótimas, apesar de expostas por longas horas na estufa.
Petisco raro e vítima de discriminação, a rã à milanesa (R$ 25) é outra joia da Juriti. Carne suave, macia, úmida, bem temperada no alho, bem frita, servida com um gominho de limão.
Quem traz tudo isso à mesa é o Gibinha, é o Zé, são funcionários com história quase tão longa quanto o próprio bar. O garçom Bigode, querido pelos clientes, não resistiu à Covid: sua morte gerou justa comoção entre os frequentadores.
Também na pandemia, disseram que A Juriti tinha fechado de vez. Era fake news, felizmente.
A Juriti está aberta, mas não até muito tarde. É um bar velho, de velhos, com garçons velhos e comida antiquada, o aviso está dado. Vá cedo.
E não se ofenda quando começarem a empilhar as mesas e baixar a porta de enrolar enquanto você ainda tem o copo cheio. A noite pode ser uma criança, mas A Juriti não é.
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