Costumo descrever reality shows como "reality fiction", tamanha a previsibilidade dos personagens e situações, zelosamente preservada pelo estímulo da produção e pela mágica da edição.
Se você prefere acreditar neles, então não assista, como eu fiz, a vários episódios seguidos de qualquer um. A pedido do "Guia", fiz uma maratona do reality gastronômico "Pesadelo na Cozinha", que pretende salvar restaurantes à beira da falência para então visitar alguns deles. Exibido pela Band entre janeiro e abril, já tem nova temporada confirmada, mas sem previsão de estreia.
Assistindo aos programas, fica evidente o roteiro exatamente igual, bloco por bloco. Quanto aos restaurantes... Bem, a ideia, dizem, é salvá-los. Mas, pesquisando o que aconteceu nas edições do programa de outros países, descobre-se que mais da metade dos restaurantes termina falindo meros seis meses depois.
Se nem o pioneiro Gordon Ramsay, apresentador do programa original, grande cozinheiro britânico e bem-sucedido empresário de restaurantes, conseguiu evitar o desastre por onde passou, é difícil crer que nosso Erick Jacquin —que encabeça a versão brasileira, sem dúvida um supercraque na cozinha, mas mal-sucedido empresário— possa fazê-lo.
Alguém acredita que um restaurante com problemas crônicos possa mudar sua história com dois dias de gritaria e humilhações, uma rápida sessão de auto-ajuda, meia dúzia de novas receitas e uma demão de pintura? Como chefs de modestos recursos e sem árduo treinamento podem em algumas horas "aprender" receitas do nível de um Ramsay ou de um Jacquin?
Visitamos três das 13 casas apresentadas no programa, bem diferentes entre si, focadas nesta temporada, para ver os primeiros reflexos pós-pesadelo.
LOS MOLINOS
Quando era um restaurante bom, cheio de viço e cult entre os gourmets, entre os anos 1980 e 2000, o Los Molinos, na Vila Monumento, conseguia imantar um público que se deslocava de toda a cidade para fora do circuito gastronômico apenas para comer a paella da proprietária espanhola.
O "Pesadelo na Cozinha" identificou, com acerto, problemas na cansada cozinha do lugar —cujo prestígio vinha de uma época em que não havia açafrão ou azeite extra-virgem no Brasil, e em que o padrão de comparação era bem diferente.
A cozinha melhorou depois do programa, com os ensinamentos salpicados por Jacquin e seu convidado, o chef Allan Villa Espejo. A paella estava melhor, mais rica e mais variada do que em visitas anteriores à participação no reality. Mas, se a missão é salvar um restaurante, o programa não responde como, naquele local ermo, sem o charme da velha dona e os clientes importantes do passado, aquela operação vai sobreviver. Talvez a melhor aposta fosse outra —não a de resgatar o passado que se foi, mas a de iniciar uma nova história e popularizar a casa para uma clientela local.
R. Vasconcelos Drumond, 526, Vl. Monumento, região sul, tel. 2215-8211. Qua. e qui.: 11h às 16h. Sex. e sáb.: 11h às 16h e 18h30 às 23h30. Dom.: 11h às 17h.
TRILHA DA COSTELA
O Trilha da Costela tem algo de bizarro: menos que a comida, sua alma são os jipes, as TVs mostrando carros sujos fazendo piruetas em caminhos enlameados e pessoas que animadamente conversam sobre o assunto —mas, provavelmente não tantas assim que possam lotar diariamente o lugar.
A nova bizarrice, criada por sugestão de Jacquin, é um prato de rã à provençal, que orna tanto com o cardápio da costelaria quanto uma Ferrari Spider ornaria com uma daquelas trilhas enlameadas. Mas o "Pesadelo" acabou de passar na TV, o público, curioso, pede o prato, e as rãs devem coaxar no brejo ainda por um tempo.
Se a cozinha da casa da Mooca é modesta, a atração é mesmo a costela. A nova churrasqueira, comprada pela produção da Band, deve estar ajudando os assados a saírem melhores. A costela não é má (aparentemente, nunca foi), mas o vistoso t-bone introduzido por Jacquin não migrou para o cardápio da vida real.
R. Juventus, 102, Mooca, região leste, tel. 2604-4103. Seg.: 11h30 às 15h. Ter. a sex.: 11h30 às 15h e 18h às 23h30. Sáb.: 11h30 às 16h e 18h às 24h. Dom.: 11h30 às 16h.
SAMOSA & COMPANY
Sempre gostei do Samosa & Company, desde que abriu numa casinha de bairro, na Saúde. Quando cresceu, enfrentou problemas na operação (o casal de donos não tem formação profissional na área), mas manteve o sabor caseiro e familiar. Por isso, estremeci quando vi, na TV, a orientação de Jacquin: a casa deveria abrasileirar a comida, abandonar sabores muito picantes, abrir mão da autenticidade.
Seguindo o script esperado, todos concordaram lacrimejantemente em fazê-lo. Por sorte, não seguiram a promessa: os donos continuam servindo a verdadeira cozinha indiana, pujante e picante, com receitas como a samosa vegetariana e o cabrito cozido com especiarias, não a nouvelle cuisine que lhes foi sugerida, ainda bem. Quanto aos problemas que enfrentam —como amadorismo e falta de um grande público cativo (são somente mil indianos no país)—, espera-se que sejam superados, mas não serão dois dias de ficção televisiva que o farão.
Al. Jaú, 1.639, Cerqueira César, região oeste, tel. 3063-2902. Ter. a sex.: 12h às 15h e 19h às 22h. Sáb. e dom.: 12h às 16h e 19h às 23h.
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