Já faz algum tempo que um galpão quase na esquina entre as ruas Rui Barbosa e 13 de Maio, no coração do Bexiga, substituiu os barulhos de marteladas e soldagem em latarias de carros por sons bem mais ritmados e agradáveis aos ouvidos.
Se antes os veículos eram deixados para serem repaginados na funilaria que funcionava ali, agora, aos domingos, eles mal conseguem passar pela rua apinhada de jovens e de vendedores ambulantes na frente do espaço, que logo fica lotado.
O local continua sendo chamado de Funilaria —mas, desde 2020, o nome virou só uma lembrança. Foi no fim do primeiro ano pandêmico que, em meio a fechamentos de casas de shows, o galpão deixou de mexer com para-choques, pneus e latarias. Uma placa ainda lista os serviços que eram encontrados por lá: pintura, mecânica, polimento e cristalização. Mas agora o Funilaria se consolidou como um novo point paulistano regado a samba e a chorinho.
Tudo começou sem alarde, inauguração formal ou divulgação nas redes sociais. O homem que tocava a oficina avisou os antigos locatários do andar de cima do prédio, que são os donos do Mundo Pensante, balada que ficou por lá até 2017, da decisão de deixar o endereço. A placa de "aluga-se" nem chegou a ser pendurada —a funilaria, de carros, logo virou a Funilaria, do samba.
Foi sob uma aura de mistério e no boca a boca, como também ocorreu recentemente com o Mercadinho do Lasanha, pé-sujo que virou balada na Vila Buarque, que o rolê decolou. A entrada hoje é tão disputada que chega a ter distribuição de senhas e filas que dobram a esquina por horas.
Funciona assim: às quintas, lá pelas 19h, um grupo senta em roda nos fundos do espaço para tocar chorinho; aos domingos, a casa abre por volta das 16h com seu já famoso samba. A entrada costuma custar entre R$ 10 e R$ 15, e o comprovante da vacinação é sempre exigido. Às sextas, o bar pode ou não abrir —talvez com um show de cumbia, música paraense ou eletrônica. Só os donos sabem. Não há qualquer aviso.
"O samba é muito massa, é um sambão mesmo, não aquele ‘gueri gueri’", conta Ciro Neves que frequenta o bar desde novembro do ano passado. "Mas eu vi o público mudar muito. Antes aparecia mais gente preta, travestis e pessoas trans, hoje é mais uma galera branca e elitizada", completa.
Depois das rodas e sob as luzes amarelas meio baixas, DJs comandam o som com músicas que podem variar entre brasilidades clássicas e contemporâneas, numa pegada que vai de Marina Lima a Marina Sena. Também pintam rock e axé, o que faz o ambiente ganhar um clima de micareta intimista em meio a caixas de cerveja e uma arquibancada de madeira —único espaço para quem quer ficar sentado.
Aos domingos, não é raro ver os mais desinibidos abandonarem algumas peças de roupa ao longo da noite, tanto pelo calor causado pela aglomeração com poucos ventiladores quanto pela aura de Carnaval fora de época.
Esteticamente, a casa manteve o estilo sem frescura da funilaria, o que acabou se tornando um chamariz. Nas paredes descascadas aparecem pendurados itens que vão de um saco de boxe a um quadro da pintora mexicana Frida Kahlo.
O cardápio é daqueles clássicos de boteco, com letrinhas amarelas montáveis, e vale a pena ser explorado às quintas, quando o espaço fica menos cheio. Vendidas entre R$ 15 e R$ 17, as garrafas de cerveja vêm geladas, já as empanadas chegam quentinhas e em sabores como shimeji e carne seca com abóbora e queijo (R$ 12). Drinques como a caipirinha e o gim-tônica (R$ 20 e R$ 22, respectivamente) também saem rápido.
O Bexiga, reduto boêmio e pulsante do samba paulistano, é lugar propício para um espaço dedicado ao gênero prosperar. Logo na frente do Funilaria, por exemplo, fica a tradicional Casa Barbosa, que ajuda a movimentar a rua de quinta a sábado. Seguindo em direção à rua 13 de Maio, chega-se ao palestino Al Janiah, que convoca rodas de samba com regularidade. A caminhada para o lado oposto desemboca no Ala! Jardim, inaugurado em julho de 2021, e também reduto de música ao vivo ao ar livre.
Depois de se recusar a falar com a reportagem numa quinta-feira de chorinho, um dos donos do Funilaria, Ricardo Venturini —o Madruga—, disse que não queria correr o risco de estragar o clima de segredo que, segundo ele, é o charme do espaço. "As pessoas gostam daqui porque é escondido. É até uma piada entre quem frequenta não saber se vai ter rolê ou não. Nem eu sei como vai ser a próxima semana", disse.
A julgar pela casa lotada e pelas filas, o Funilaria já deixou de ser um espaço secreto paulistano há algum tempo. Mas quem passeia pelas publicações do Instagram do local, que não dá detalhes sobre a programação ou endereço, ainda nota um certo clima de mistério a partir de uma pergunta que se repete com poucas variações nos comentários das fotos: "Hoje tem?".
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