Assim como normalmente acontece com negócios de bairro, o restaurante que ocupa há 30 anos um imóvel na rua Correia de Melo ficou conhecido principalmente pelo nome dos proprietários. É o Adi e Shoshi ou simplesmente Shoshi, Shoshana ou Delishop —uma redundância, considerando-se que esse costuma ser o termo usado para designar as lojas de comida judaica.
Aberto pelo casal Adi e Shoshana Baruch em 1991, ali funciona um dos estabelecimentos que compõem a babel gastronômica do Bom Retiro, na região central de São Paulo. Hoje, mais do que isso, também simboliza o espírito de uma comunidade e apresenta um modelo do casamento entre o tradicional e o moderno.
Último clássico especializado em cozinha judaica a sobreviver no bairro, o espaço foi mais um dos que sofreram com a pandemia e chegou a anunciar, via redes sociais, que fecharia as portas até o fim de 2020. A notícia gerou comoção e deu um novo respiro à casa, que divulgou que manteria a operação. No comecinho do ano passado, o negócio comunicou que recebera um investimento e que voltaria a abrir as portas. Mas não deu certo.
Esse vaivém chegou ao fim em julho, quando Benjamin Seroussi enfim pegou as chaves do imóvel. "Não estava nos meus planos comprar nenhum restaurante", conta ele. Mas ao ouvir que a família teria mesmo que fechar as portas, ele decidiu assumir o negócio.
"Eu achei que ia ser uma perda para o bairro se o restaurante fechasse", diz. "Não deixa de ser um patrimônio imaterial."
Seroussi é diretor da Casa do Povo, centro cultural instalado a poucos metros do Shoshana, na rua Três Rios, e se uniu a dois amigos, Arthur Hirsch e Ines Mindlin Lafer, para pilotar a mobilização coletiva em prol da casa. "A gente se juntou para manter a história viva, mas também para tentar fazer algo um pouco diferente", explica.
Com isso, o trio abriu o capital para mais 20 sócios minoritários —até o momento 13 pessoas entraram na sociedade. A ideia é que o restaurante de perfil familiar seja agora um coletivo. "Assim, ele deixa de ser apenas uma empresa para virar um negócio com propósito."
Para Seroussi, o momento pandêmico demonstra que servir comida no Brasil não pode se restringir apenas ao atendimento dos clientes. "Tem que fazer mais, tem que trabalhar com o bairro", diz. Por isso, a partir do momento em que embarcou na empreitada, começou a vislumbrar quais caminhos a cozinha do Shoshana seguiria.
"Vamos pegar a tradição como ponto de partida, não de chegada", explica Seroussi, que planeja oferecer ali uma culinária judaica diaspórica, com receitas do norte da África, do leste europeu e até da Índia, além de resgatar receitas dos outros restaurantes judaicos que deixaram de existir no bairro, como o Europa. Sempre sob a supervisão da própria Shoshana, que mantém a operação da Casa Búlgara, outro clássico do Bom Retiro, a poucas quadras dali.
O projeto começou a ganhar formas mais concretas com a chegada do chef e pesquisador Fred Caffarena, do Firin Salonu e Make Hommus Not War. Apesar de não ter raízes judaicas, o cozinheiro é especializado na gastronomia do Oriente Médio.
"Eu não me sentiria confortável para assumir a casa se a proposta fosse oferecer somente comida de Israel. Acho que teriam pessoas mais simbólicas e melhores para exercer este papel. Mas isso da pesquisa tem muito a ver com o meu trabalho", explica. "A gente fala que não é para criar um ambiente 'gourmetizado', supermoderno, mas trazer essa herança, essa história, deixar essa gastronomia só um pouquinho mais atualizada, dar a ela um contexto mais atual."
Apesar de estar fechada para reforma até março, a casa apresentou ao público um pouco da sua nova fase em 28 de dezembro, em um evento batizado de Mishmash Shoshana, palavra que significa "mistureba" em ídiche —língua falada por judeus e judias imigrantes da Europa Oriental.
No cardápio, Caffarena apresentou releituras de clássicos judaicos como latkes e guefilte fish. O evento, que começava às 18h, desde as 17h30 já estava lotado com famílias do bairro, clientes antigos e gente de outros cantos da cidade. Shoshana não compareceu ao encontro porque Adi morreu no fim do ano. Mas seu filho Nir, que trabalhava como chef da casa até o espaço fechar as portas, esteve presente. "O restaurante é também uma homenagem ao Adi", diz Seroussi.
A proposta irreverente da noite agradou o público. "Achei que seria xingado por todas as matriarcas que estavam lá, mas elas não só adoraram, também entenderam a proposta", conta o chef.
Mas eventuais reclamações vão fazer parte do roteiro, adianta Seroussi. "Em um lugar judaico, as pessoas têm que reclamar", brinca. "A gente espera ser o segundo melhor lugar para comer, atrás apenas da casa deles."
Comentários
Ver todos os comentários