Chef, líder comunitária e tia de toda uma quebrada. Nem parece que todo esse currículo de Cleunice Maria de Paula, 57, só começou há cinco anos.
Hoje, ela é mais conhecida como a Tia Nice, espécie de embaixadora da cozinha orgânica na região do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, onde comanda o Organicamente Rango. Mas a sua trajetória lembra mais a das muitas mães pretas paulistanas do que a das chefs que orquestram restaurantes bacanas na capital.
O primeiro contato de Nice com a cozinha também foi seu primeiro trabalho, aos 17 anos, em um restaurante no Itaim Bibi. “Foi lá que eu comecei a me apaixonar pelos orgânicos, mas naquela época a gente chamava de comida natural”, conta.
Grávida, ela trocou o dólmã pelo trabalho doméstico, para poder se dedicar aos filhos. Por 20 anos, revezou-se entre as casas das patroas e também o serviço de manicure. Trabalhava praticamente sete dias por semana, mas costuma falar que aprendeu muito nessa fase. No serviço de beleza, passou a ter noções de empreendedorismo. Como doméstica, começou a cozinhar com menos produtos industrializados.
Foi com os filhos já crescidos que ela realizou o sonho de ter o próprio bar, em Ilha Comprida, no litoral sul paulista. Entre suspiros, lembra que a casa era “muito linda mesmo”. Em 2016, porém, ela voltou para a capital paulista e começou a dar corpo para o Organicamente, que foi aberto no finzinho de 2019.
O negócio mal havia germinado e, como tantos outros, teve que fechar as portas por causa da pandemia. “Foi muito triste. Todo mundo chorou”, lembra. Mas isso não significou braços cruzados.
Logo a cozinha foi abastecida com doações, cestas básicas e caminhões de ingredientes de agricultores parceiros —teve um que forneceu uma tonelada de cenouras.
Sob a batuta da chef, os produtos viraram marmitas. Ao longo de todo o ano passado, foram mais de 20 mil quentinhas distribuídas para famílias em favelas da zona sul de São Paulo, além de 10 mil cestas básicas. A iniciativa também entregou mais de 2.000 livros de autores negros, como Racionais MC’s e Grada Kilomba. “Esses meses foram muito difíceis. Tinha gente que vinha até aqui pedir comida”, conta.
Com o afrouxamento da quarentena, o restaurante voltou a receber o público presencialmente, já com o lançamento do serviço de entregas próprio e via aplicativo. Agora, com tudo mais uma vez fechado, a saída é o delivery. Por enquanto, ele funciona no Campo Limpo, no Capão Redondo, no Butantã e em Santo Amaro. No segundo semestre, deve atender o centro e Pinheiros.
O menu tem pratos do dia, com opções como moqueca (R$ 29,99) e bobó de shimeji (R$ 19,99), servidos às sextas, além de porções como o peixinho da horta empanado, que Nice chama de torresmo do vegetariano (R$ 5).
Mas não dá para falar de Nice sem citar seu filho, Thiago Vinícius —do mesmo jeito que não dá para falar do Organicamente sem mencionar a agência Solano Trindade.
O restaurante fica nos fundos do imóvel que abriga a agência, um espaço cultural que conjuga armazém de produtos orgânicos, a hortinha que abastece as receitas da casa, bar, brechó, rádio comunitária e coworking para mais de 300 microempresas.
É Thiago quem está à frente da empreitada —e foi atendendo ao seu chamado que Nice vendeu seu bar “lindo e maravilhoso” na Ilha Comprida e veio criar raízes no Campo Limpo. “A gente queria trabalhar com orgânicos na comunidade”, conta.
Assim que chegou a São Paulo, foi fazer um curso de gastronomia no Senac, onde mergulhou na cozinha vegetariana e se encantou pelas pancs, as plantas alimentícias não convencionais. “O coitado do coração de banana ia pro lixo! Lá aprendi que ele vira coisas maravilhosas.”
Desse aproveitamento, surgiram os pastéis pancs, que Nice vendia em eventos e feiras. O coração de banana dividia o recheio com o almeirão, a capuchinha com o alho-poró. “Para as pessoas da região, também foi uma descoberta. Nas feiras, percebi que aqui também tem muita gente que não come carne.”
Para este ano, ainda mais com a pandemia longe de ser controlada, a agência prevê a entrega de mais 16 mil marmitas. “Uma pessoa ligou aqui e doou cem marmitas por dia até o fim de outubro”, conta Nice. Quando perguntada se poderia contar quem foi, ela diz que não sabe. “Ela não se revelou. Mas, com o dinheiro, a gente prepara duas quentinhas por família, com arroz, feijão, farofa e dois tipos de legumes cozidos.”
Outro plano, que só deve se concretizar com o fim da quarentena, é dar aulas de gastronomia para jovens da comunidade, em parceria com a ONG carioca Gastromotiva.
Tímida, Nice fala devagar e não esconde o nervosismo durante a conversa. Só relaxa quando sai da sala e cumprimenta um conhecido. “Não estou muito bonita hoje? Dei entrevista.” Depois, conta que havia colocado até uma sandalinha para o papo. “Mas para a foto eu quero estar de cozinheira, com meu dólmã”. Dito e feito.
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