Descrição de chapéu Opinião
Restaurantes

Ir a um restaurante na pandemia é como usar camisinha na hora do sexo

Visitar casas reabertas em SP é um prazer com máscara e lambuzado de álcool em gel

Na minha cautelosa volta aos restaurantes de São Paulo depois de seis meses de reclusão, a mudança se escancara —literalmente— já à porta.

Num endereço sofisticado como o Evvai, na minha estreia nesta nova era, a hostess tem uma beleza que podemos apenas intuir. No lugar do sorriso aberto, há a dupla blindagem da máscara de pano e do capacete de acrílico. No lugar do gesto elegante apontando o salão, apenas um movimento imperioso empunhando o termômetro em formato de arma contra sua testa.

É uma noite cheia de estranhamentos. É preciso se acostumar com álcool em gel no lugar de graciosas flores ou velas no centro da mesa, com guardanapos de papel, com talheres que, limpos ou sujos, te acompanham a noite toda. Fora as vozes de garçons e sommeliers abafadas pelo pano e pelo acrílico, dando informações que mal escutamos.

Mas, ainda assim, essa é a volta de um prazer que faz falta —o da comida à la minute (e não em delivery), o da convivência com companheiros de mesa (e não só os de todo dia), o de compartilhar com estranhos um mesmo espaço social a que todos foram com um mesmo fim.

Ao visitar diferentes tipos de restaurante, impressiona ver o rigor com que estão seguindo regras e protocolos dos novos tempos. Com toda a estranheza do novo normal, a excelência de meticulosos cardápios estão voltando.

É o caso do mencionado Evvai, do chef Luiz Filipe Souza, mas também nos novos Tujuína, de fartos menus à la carte com o mesmo primor que o chef Ivan Ralston imprimia ao Tuju, do Chez Claude, com pratos que fizeram a história do chef Claude Troisgros, e do Fame, onde Marco Renzetti serve menus-degustação —uma grata surpresa para quem conheceu a sua extinta Osteria del Petirosso.

Em todos eles, o espaço entre as mesas é grande, mas há no ar uma vibração coletiva, de clientes e equipe. Ainda mais nos locais originalmente mais informais, como o Le Jazz da rua dos Pinheiros, agora estranhamente espaçoso para um bistrô que, na origem francesa, é apertadinho. Ou como o Famiglia Mancini, bem menos ruidoso do que o normal de uma cantina. E também destinos populares, de serviço de bufê, cheios de luvas descartáveis, como o Dr. Costela (a especialidade está no nome) e o Compadre, de cozinha da fazenda.

Nos restaurantes a céu aberto, o clima fica ainda mais relaxado. Os cuidados que presenciei são também rigorosos, mas parece reinar uma sensação de maior de alívio.

No Capim Santo, que fica em novo endereço, no Museu da Casa Brasileira, o serviço é no imenso jardim, com pratos servidos entre as árvores, tendo o céu por testemunha.

É assim também na laje de Paraisópolis onde funciona o Mãos de Maria, sombreado por coloridos guarda-sóis que vibram com a cantoria durante a feijoada de sábado —resguardada por máscaras, álcool em gel e o ar livre circulando.

Outros restaurantes são fechados, mas têm varandas ventiladas para alívio dos clientes mais cautelosos. No premiado A Casa do Porco, a “varanda” é literalmente a rua, com as laterais do restaurante acomodando mesas que são oásis para provar os menus sofisticadamente populares do chef Jefferson Rueda.

No Parigi, casa franco-italiana do grupo Fasano, o antigo jardim de inverno foi totalmente aberto nas laterais e virou varanda —aliás, o grupo, que na casa original contava com um teto retrátil, instalou o mesmo expediente no Gero, que agora também permite aos clientes mirar diretamente os céus.

Apesar do alívio geral, é impossível não sentir que tudo parece um pouco contido à força. Faz lembrar uma outra forma de prazer sob vigilância: aquela imposta por outro vírus, o HIV, 40 anos atrás.

Para uma geração pós-hippie e pós-pílula anticoncepcional, formada na alegre pregação do amor livre, foi um choque saber que, entre os corpos, passou a ser obrigatória a barreira da camisinha, como uma questão de vida ou morte. Mas, mesmo com camisinha, melhor fazer amor do que não fazer, certo?

Também com os restaurantes, ante o novo coronavírus, que também mata, é melhor vestir a máscara, lambuzar-se de álcool, cumprimentar de longe, aguçar o ouvido ante palavras abafadas, apertar a vista para ler cardápios no celular. E considerar esse novo jeito de fruir e de compartilhar o prazer de comer à mesa.

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem

Últimas

Ver mais